quinta-feira

Uma história incompleta cap. 18

18

A atitude do detetive não saía da cabeça de Pôncio, que à noitinha comentava seus motivos possíveis com Loredo e o Castro. – Pode ser que tenha descoberto alguma coisa importante, e esteja economizando palavras para não desperdiçar assunto. É bem a cara dele. – Tomara que sim, augurou o redator-chefe. Começo a achar que esse cara é um detetive sui generis, um profissional muito competente, com certeza, mas dotado da intuição de um sensitivo. A maneira como ele age é fora do normal. Parece que fareja as coisas, tira conclusões no ar, inesperadamente. E ainda não peguei um erro nas conclusões que ele tira.
Castro concordava com o chefe, mas logo a conversa seria interrompida por um telefonema anônimo, rápido e agressivo, em que uma voz de homem dizia, escandindo as sílabas, – podem escrever. Se o puto do Munhoz não for pra cadeia, vocês vão se ver comigo. Castro tinha grampeado os telefones da redação e o do escritório de Pôncio para chamadas de fora. – Vamos achar esse desafeto do senador, disse. Depois ligou para Cosme, que respondeu laconicamente já saber da chamada e de quem provinha. – Para isso é um detetive, comentou Loredo, um pouco decepcionado com a ingenuidade do Castro, ao mesmo tempo em que ruminava sua própria surpresa.
Hartmann e Larissa, que já tinham tomado um café dias antes, conversavam de novo, no mesmo lugar, sobre o imbroglio em que o marido dela se envolvera e as possibilidades de defesa e absolvição, que ele não julgava difícil de conseguir. A postura dela era a de uma esposa preocupada, e a do comandante parecia expressar apenas solidariedade e atenção. Entre as palavras que trocavam, no entanto, havia certa eletricidade que os olhos às vezes confirmavam, sem que nenhum dos dois fizesse um gesto fora do ritual da amizade. Até o momento em que Roberto – assim ele queria ser chamado – deixou escapar, ninguém poderia dizer se intencionalmente ou por um desses lapsos que nos denunciam sem querer, mas morrendo de querer, que os olhos dela lhe pareciam tão cheios de vida que o deixavam meio tonto.
Seguiram-se uns segundos do mais intransponível silêncio, em que ambos pareceram petrificados, e depois Larissa riu um risinho meio constrangido – imagina, como você é gentil, e pegou a bolsa para deixar uma nota sobre a mesa. Ele porém se adiantou e foi até o balcão pagar a conta. Antes de se despedirem, na porta do café, ele beijou sua mão bem de leve, com ar grave. – Eu gostaria que a gente pudesse se ver de novo. Acho que é preciso examinar melhor essa questão que o Canhedo colocou e que ficou um pouco – Larissa porém parecia bem apressada, e desceu os três degraus com um sim de cabeça, sem olhar de novo para ele.
Como se adivinhasse, Pôncio chegou mais cedo e a encontrou diante da bancada da cozinha temperando uma salada para o jantar. Os meninos tinham viajado com a família de um colega de Cinho para um fim de semana na praia.
Larissa remoçara. Parecia mais ágil, a cara meio marota. Estava mais esguia, a cintura dengosa, os seios querendo furar a blusa fina. Tinha o rosto corado, quente, e quando o marido se aproximou para beijá-la como há muito não fazia, tudo escureceu aos olhos dela. Um desejo quase doloroso tomou conta de Pôncio, e ela nem pensou em resistir quando a levou para o quarto, enganchada a seu corpo, e o líquido quente escorreu pelas pernas do dois ainda a caminho da cama. Lembraria mais tarde de ter chorado e suplicado coisas muito loucas, da sensação inexplicável e nova de um prazer de aniquilação, de ter pedido para morrer por suas mãos, e das vezes em que o gozo voltaria a pulsar em cada um de seus órgãos, as cabeças como se estivessem prestes a explodir, pontos luminosos percorrendo os olhos. Houve um momento em que Pôncio teve medo da violência que os dominava como uma força independente injetada no sangue.
Adormeceram quase sem sentir, como se a vida tivesse se esgotado neles. Ficaram assim, encaixados um no outro, até o dia seguinte, que era um sábado. Acordaram depois do meio-dia, e um beijo intenso misturou seus dentes e as línguas, os lábios prestes a se fundir, até que ele deslizou para dentro da mulher, e ternamente se deixou ficar assim, à luz do sol que vinha da janela. – Não quero levantar, ele disse. Não quero sair daqui. Quero te curar das maldades dessa noite, e a abraçava, acariciando sua pele, protetor, beijando as marcas em seu pescoço. – Então fica, ela respondeu, toda entregue, sentindo as asas se agitarem de leve. É tudo que eu mais quero, completou, enquanto o voo batia mais forte e ela gemia baixinho, alagada de prazer. Dormiram de novo até que a tarde já ia alta e sentiram fome. Na bancada da cozinha, uma salada pronta os esperava.
Aproveitaram a ausência dos filhos para ir dançar e entraram pela noite em uma boate da moda, rodeados de jovens, à luz frenética que piscava sobre eles, e tudo lhes parecia uma delícia. De lá saíram para namorar à beira-mar, quase de manhã, e tomaram café em frente à praia. – O melhor café de minha vida, disse Pôncio, e era sincero. – Da minha também, ela respondeu, e ficaram os dois perdidos nos olhos um do outro. – Sabe, fala sério, você não acha muito louco esse nosso caso sem começo nem fim? – Sabe o que eu acho? – ele disse, junto ao ouvido de Larissa. Acho que você encontrou a palavra certa. Nós temos um caso que nem o casamento consegue atrapalhar. Voltaram para casa em estado de graça, ela deitada ao colo dele. – Se um guarda nos pega, você perde a carteira, ela disse, rindo. – Abençoados os guardas que dormem na manhã de domingo, ele respondeu, dirigindo com uma das mãos.
A segunda-feira se anunciava por uma chuva forte que engarrafou o trânsito e atrasou boa parte dos alunos da escola dos meninos. Ao volante, Pôncio ligava para a redação, mas o celular funcionava mal, e ele acabou desistindo. Achou melhor relaxar um pouco. Tinha um dia imprevisível pela frente, não valia a pena perder a cabeça. Ficou olhando a chuva e conversando com os filhos até que a fila de carros e ônibus começasse a se deslocar. O tempo dera uma pequena trégua, mas quando os dois saíam do carro o vento recrudesceu. – Liguem pra casa, se não conseguirem sair na hora, gritou. Não deixem a mãe preocupada. Eles levantaram os polegares, correndo para dentro. Enquanto dava saída ao carro, teve a impressão de que alguma coisa dentro de si estava forçando seu peito, atravessada à respiração.


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