quarta-feira

Será verdade o que dizem por aí?


Fuessli. Silêncio.


A gente aqui na pátria amada acaba encarando tudo que se repete, por pior que seja, com uma naturalidade assustadora. O crime, a estupidez e a violência – meu Deus do céu, que chatice falar nisso tudo. Miséria, falta de escolas, vida de biscateiro, mulher que apanha e fica calada, crianças que passam o dia entregues a si mesmas e à maldade alheia, porque o pai não está nem aí, a mãe diarista tem que ganhar o dia ou então ninguém come – tudo é encarado como natural. Ou as carências tantas, que não sobra tempo e muito menos energia para reagir. E reagir como, onde? Apelar pra quem?
É difícil entender como pessoas que crescem e se tornam adultas vendo o mundo desse jeito conseguem se tornar gente de bem. No entanto muitos se tornam cidadãos úteis, que trabalham, lutam, correm atrás. No caminho desses, por pior que fosse, deve ter havido, em algum momento, alguém capaz de carinho, algum incentivo que mostrasse uma vida menos desprezível.
A educação continua na base do processo. É demorado, leva anos pra dar resultado. Mas sem ela podemos desistir de melhorar. Nem daqui a cinquenta ou cem anos. Então esse primeiro passo tem que ser dado, mas não só. A questão educacional é uma aposta no futuro, uma ponte que teria que começar a ser construída agora, já que quase tudo que vem sendo feito está dando errado, a começar pelas fatias vergonhosamente baixas do orçamento alocadas a esse setor.
Será mesmo que interessa a nossas autoridades manter as pessoas deseducadas, mal instruídas? Será essa a democracia que merecemos?

segunda-feira

Comer comer ou só comer?


Paul Cézanne. Cerejas.

Não sou xiita em matéria de comida. Mas obedeço com certo rigor a alguns princípios sem os quais parece bobagem fazer dieta. O primeiro deles é abandonar as frituras.
·        Doces sem prazer, nem fucking. Ou é coisa muito boa, e nesse caso a gente se concede uma mordidinha pra sentir o gosto aos domingos e feriados, ou é assim-assim e não merece exceção.
·         Verduras. Não tenho medo de ficar cor de Hulk, aproveito que gosto e como mesmo.
·       Frutas, sucos e saladas mil. Se disserem (sempre alguém diz) que suco de laranja engorda, que abacate não deixa emagrecer, que banana engorda e faz crescer, não deixo de consumir nenhum deles. Manero, mas não abandono. Não sou partidária de abstenções absolutas, a não ser em casos como alcoolismo ou drogas mortíferas.
·     Perder peso devagar é o melhor meio de não recuperar o que se perdeu, a menos que se termine um regime pra fazer outro de engorda logo a seguir. Melhor também pra evitar um estresse desnecessário – já chega o que a vida impõe.
·      Compensar a comida a menos com mais atividades que dêem prazer. A vida não merece que se abra mão de tanta coisa boa como o amor, o convívio com as pessoas a que se quer bem, uma atividade criativa que não precisa visar o lucro ou a fama, um bom filme, peça ou livro. O trabalho pode ser uma das alegrias da vida, quando se gosta do que faz.

sexta-feira

Para que serve a poesia?







Tenho ouvido bons poetas declararem sua descrença na poesia. Um comentou que poesia é inútil, outro que não conseguia mais levar essa coisa de poema a sério.
Poesia pode ser inútil porque não tem qualquer efeito pragmático. Não dá dinheiro, não é muito lida, não vende muitos livros, a não ser em casos como o do Ferreira Gullar. Não muda a cabeça das pessoas, a não ser talvez no exato momento da leitura, se o leitor estiver vulnerável ou mais benévolo que de costume.
Não condiz muito com o mundo em que vivemos. Não tem nada a ver com política, finanças ou o governo, e há quem abomine poesia por estar voltado para assuntos considerados de alta importância ou dignidade.
Mas neste último caso confesso que duvido muito da lisura ou da sensibilidade dessas pessoas em relação aos outros.
Não ligo para essas opiniões, que até me afetam um pouco às vezes, dependendo do momento que se vive. Mas o poema, que é o que importa, sempre brota de algum lugar para acenar com suas palavras e silêncios. Poema é pra isso, mostrar o momento que se está vivendo e virar pelo avesso esse momento, tentar esgotar o modo como e até que ponto esse momento nos afeta.

quarta-feira

O tempo e Borges










"O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrasta, mas eu sou o rio; é um tigre que me destroça, mas eu sou o tigre; é um fogo que me consome, mas eu sou o fogo" 

- J457o0170rge Luís Borges, "Nova Refutação do Tempo", Obras Completas, II, p.144.



segunda-feira

Mais-que-perfeita




Não deixava ninguém – ninguém mesmo, fosse quem fosse – sem resposta pronta e que lhe parecesse à altura. Além de respondona, era também precipitada, ansiosa e irrefletida – convenhamos, um porre de lidar. Tinha perdido um emprego por causa do gênio irascível. O marido não resistiu: embora fosse um homem reconhecidamente paciente e manso, mudou-se para outra cidade com a cozinheira, pessoa calada e sorridente, que além de tudo fazia uma carne assada de se comer rezando e um feijão sem igual. Os filhos viviam mortos de vergonha com os micos que tinham que pagar. O pai cortou relações com ela e a mãe só não se afastou também porque morreu cedo. Os vizinhos pouco a pouco iam deixando de falar com ela, que via nisso um motivo para lhes infernizar a vida sempre que possível. Já aos seis anos, ela desafiava a professora do CA mostrando-lhe a língua e batendo o pé quando contrariada.
Um dia encontrou na rua uma carteira recheada de dólares: eram mais de mil, em notas grandes. Nem um endereço, um nome, referência nenhuma. Só as verdinhas, viçosas, tentadoras. Para os outros, porque além – e apesar – de insuportável, era honestíssima e escrupulosa respeitadora da propriedade alheia, o que fazia questão de propalar a quem quisesse e a quem não estivesse a mínima interessado em ouvir – e que era a esmagadora maioria.
“Se entregar à polícia”, pensou com irrepreensível lucidez, “vão afanar. Se puser anúncio, vão me assaltar. Melhor guardar e ficar esperando algum sinal do dono.” Fez isso e pôs a carteira com a dinheirama numa bolsa fora de uso, guardada por baixo de todas as outras no sobrado do armário.
Continuou vivendo a vida e fazendo das suas, e uns dias depois viu num jornal um pequeno anúncio que não teria visto não estivesse ligada no assunto: “Perdeu-se carteira com dólares na altura da rua Uruguai, esquina de José Higino. Caso a tenha encontrado, queira entregar na portaria deste jornal sob a senha 8.243. Gratifica-se bem.”
O coração acelerado, correu até o armário, pegou a velha bolsa e retirou dela a carteira, que jogou na bolsa em uso. Arrumou-se rapidamente e desceu para devolver o que não era dela. “Sorte dessa pessoa”, pensava, jubilosa, contente consigo mesma. “Vai ver que ainda existe gente decente no mundo.” Correndo para a rua, quase derrubou o vizinho do 302, um homem de maus bofes com quem já tinha tido dois pegas dos grandes e que imediatamente se virou esperando outro bate-boca. Nem olhou para trás. Deixou o homem vociferando na portaria e entrou esbaforida no primeiro ônibus para o centro. Depois achou arriscado fazer a viagem toda de ônibus e desceu no metrô. Em quinze minutos entrava na redação do jornal, triunfante, sentindo-se uma vencedora. A moça da recepção ouviu o que ela lhe dizia com um olhar meio ausente, e pegou o interfone. Trocou algumas palavras que ela não chegou a ouvir com alguém que não podia ver. Depois estendeu a mão para pegar a carteira e lhe entregou um envelope fechado. Pensou em não aceitar a gratificação, afinal não fazia mais que sua obrigação. Mas a moça já tinha sumido do balcão da entrada e ela ficou sem saber o que fazer. Jogou então o envelope dentro da bolsa e deu meia-volta em direção à rua, que lhe pareceu mais iluminada e alegre que de costume. “É a boa consciência”, pensou, transbordando de orgulho por seu gesto nobre, com um meio-sorriso e se sentindo um pouco mais alta e melhor que as outras pessoas. No metrô, lembrou-se de abrir o envelope. Dentro havia uma imagem de são Judas Tadeu com uma novena impressa atrás e um bilhete que dizia: “Eis a sua recompensa. Foi ele que me devolveu essa carteira e você foi seu instrumento. Sorria e sinta-se honrado porque ele o escolheu.” A coisa colocada desse modo arranhou um pouco sua vaidade, e ela chegou de mau humor, chutou o gato e jogou longe os sapatos.
Na redação, a moça da recepção entrara no banheiro e, trancada por dentro, abrira a carteira para conferir: mil duzentos e quarenta e cindo dólares. Arrumara então o dinheiro em maços distribuídos por lugares estratégicos e, pondo a carteira vazia no bolso do uniforme, voltara rapidamente, porque não podia se ausentar da recepção por mais de cinco minutos sem deixar alguém em seu lugar.

sexta-feira

Viagens aos mesmos lugares


·                    Durante duas semanas deixo de ler jornais e revistas, não vejo mais noticiário de tv nem quero saber das notícias de política e polícia, muito menos das que misturam as duas e que são cada vez mais frequentes. Estou louca pra ver se isso muda alguma coisa na minha cabeça. Se mudar pra melhor, repito a dose. Alienação?  No, babies. Entrei num período de desintoxicação mental.

·                    Afinal, penso o pensamento de quem? Se é o meu mesmo, por que tem tanta influência dos outros? Se não é meu, como se explica que eu, e não outro, diga o que acho que penso? Às vezes fico assombrada com a uniformidade de determinados discursos. Vivemos à sombra de um emaranhado de idéias e pontos de vista ditados por interesses que não conhecemos e não são os nossos. Não dá pra confundir gestos e atitudes impulsivas com opiniões próprias.
·                    Uma coisa que me deixa cabreira é a diferença entre o que de fato acontece na vida real e o que chega a nosso conhecimento via mídia. Aderimos um pouco sem sentir à opinião de um ou outro colunista que admiramos, pelo que sabemos dele e por suas idéias. Até aí, tudo bem. Mas parece que isso tem um efeito cumulativo. Acabamos nos condicionando a pensar pela cabeça dos outros, o que não se recomenda, por melhores que os outros sejam.

quarta-feira

Visão de fantasia do harém





No harém
as esposas mais tristes
são a segunda e a terceira.
As outras
incontáveis
não têm maiores compromissos
e se divertem muito.

segunda-feira

Querida mamãe,



Quando resolvemos casar, Dilo e eu sabíamos que nossa vida em comum não seria como a da maior parte dos casais que conhecemos. Não conseguimos imaginar um dia-a-dia de renúncias e submissões, sempre lutando contra para conseguir levar a vida adiante. A gente quer sempre lutar a favor. Já chegam as obrigações de trabalho, as horas marcadas e o corre-corre para comer o tal pão com o suor do rosto (argh!). Por isso combinamos que nossa casa tem que ser arejada, alegre e cheia de sol. Onde cada dia seja realmente novo, onde haja lugar para surpresas e improvisos. No que depender de nós, queremos dar sempre alegria e bem-estar um ao outro.
Para começar, separamos um quarto para o amor e o resto da casa ficou para a amizade, o companheirismo e a solidão, quando der na telha de um ficar sozinho (às vezes é muito preciso, pode acreditar). No quarto, a condição é não duvidar de nada e confiar sempre. Temos uma comunhão universal de propósitos, e a felicidade veio morar com a gente e não parece disposta a mudar de endereço. Cada um diz ao outro as coisas de modo natural e nunca, nunca mesmo, faz com que ele se sinta desrespeitado. E acredita em tudo que o outro disser. Cumplicidade completa.
Não é invenção do machista da dupla, planejando me passar pra trás e pular a cerca sem conseqüências. A maioria das mulheres ainda pensa assim. O trato vale para os dois do mesmo jeitinho. Queremos ficar juntos, é tudo que mais queremos nesse mundo. Mas se entre nós se interpõe a vida com suas exigências inesperadas, somos realistas o suficiente para entender que não há como lhe resistir. A vida é sempre mais forte. Um dia ela nos pega pelo pé. É uma decisão nossa, e pode acreditar que não há cinismo em pensar desse jeito. Não é o que chamam “casamento aberto”, porque não há propósitos. Fizemos um pacto: as coisas têm que acontecer espontaneamente. Eu sei que é difícil de acreditar. Mas enquanto o outro quiser ser acreditado, é sinal de que não desistiu do grande encontro, da cumplicidade total nem do segredo nem de nada. Isso é o que vale para o amor – que a gente ainda se queira acima de todo o resto, seja lá o que for, que cuide um do outro como a coisa mais importante do mundo. Que o amor seja do tipo que traz também amizade e confiança. A gente só acredita em casamento se for desse jeito.
Pode pintar ciúme, faz parte da coisa toda. Não é proibido, é até um bom sinal. Mas não pode ficar solto feito bicho brabo. É parte da gente, tem que ser tratado com carinho pelos dois como um aliado que vai nos levar à reconciliação (quer coisa mais gostosa que se reconciliar?). Depois, não é proibido brigar. É mesmo impossível não brigar nunca, já que, por mais cúmplices, somos dois. Se a gente não tivesse a liberdade de brigar, ia acabar numa camisa-de-força se odiando. Mas está implícito que a liberdade deve valer em todos os casos, e se acontecer o que agora nos parece impossível, mas a experiência diz que pode acontecer – o amor ficar doente ou até morrer – o carinho não morre. É uma delícia saber que, aconteça o que acontecer, seremos sempre amigos, cúmplices e se possível confidentes. Grandes amigos, leais por toda vida.
Quanto ao cotidiano, acontece justamente o contrário: é preciso duvidar sempre, manter as inadequações funcionando e garantir um mínimo de diversão no dia-a-dia. Não creio por exemplo que ele seja capaz consertar o banco do jardim, e faço questão que ele saiba disso. Deixarei que experimente o martelo e os pregos, mergulharei ternamente seus dedos inchados em gelo e, se o pior acontecer, bem humorados jogaremos fora o banco de ripas quebradas que nos terá rendido uma boa história para a próxima reunião com os amigos. Ele não levará a sério minhas tentativas de conseguir um suflê mais leve que o de sua tia Aurora, mas há de prová-lo com gula – e pode rir de mim se eu perder a aposta, porque depois a gente vai se beijar. Seguiremos pelo dia-a-dia fazendo tudo que desejamos sem abrir mão do direito de errar, experimentar e tentar de novo. Caroços no mingau, infiltações no teto, arranhões no carro novo, tudo será superado, mesmo que seja irritante – irritação libera adrenalina, e adrenalina é ótimo pra viver.
Nos casos críticos, como mágoas ou decepções, o segredo maior está em deixar a discussão para três dias depois – passado portanto o momento cabeça-quente, motivo maior das querelas fatais. Depois de frios, os fatos mais desagradáveis podem render boas piadas e se tornar estimulantes. Mas quando não for possível deixar de brigar, se a adrenalina transbordar e invadir o sangue como fogo na pólvora, brigaremos pra valer. Sem agressão física, é claro, mas com licença para exercer raiva explícita e atuante, valendo até quebrar jarras ou copos (menos os do jogo de cristal). Ao contrário do que possam imaginar, tais crises funcionam como poderoso afrodisíaco.
Sabe, mãe, a gente quer se amar, porque é bom demais, e vamos tentar levar adiante nosso plano de vida. Querer reduzir o outro a si mesmo pode estragar tudo. Nossa casa tem que ter espaço para cada um do jeito que é.
Não contamos a ninguém nosso segredo, mas afinal você é nossa melhor amiga e merece partilhar dessa felicidade que inventamos. Isso vai tornar você a mãe bem-amada de um casal feliz.
Muitos beijos e todo o carinho de seus filhos
Lulu e Dilo
PS: Sei que você está pensando em como vão ficar as coisas quando tivermos filhos (que nós queremos e você também, não pense que me engana!). Por enquanto só podemos dizer que tudo que desejamos para eles é que aprendam a amar com a gente. O resto se ajeita. Santo Agostinho disse “ama e faze o que quiseres”, não disse?


sexta-feira

Três personagens à procura de um Manoel Carlos


Karina, de quinze anos, mora no Andaraí, é morena, tem um metro e sessenta e cinco, é alegre, tem os olhos puxados e usa os cabelos (que são lisos, lustrosos e muito negros) soltos, dançando sobre os ombros. Adora um pagode e um baile funk, mas também participa das festas de hip-hop do clube do bairro. No aniversário ganhou dos amigos da escola uma mensagem de alto-falante que durou mais de uma hora, mas os vizinhos não se chatearam, ao contrário: vieram para a porta da vila onde ela mora e ajudaram a cantar parabéns. Ano que vem entra no cursinho e vai tentar o Enem. Está indecisa entre educação física e pedagogia. Fuma escondido desde os doze anos (“era meio gordinha, depois emagreci, mas me acostumei e agora não dá pra largar”). Não perde as novelas da tarde e a das oito. Lê a Caras e a Quem toda semana. Acabou um namoro de dois anos (“o amor acabou”) e atualmente fica com uns colegas que costuma encontrar no clube. Quer casar de véu e grinalda e ter dois filhos.

Antônia, dezesseis, é uma loura bronzeada de olhos verdes do Leme. Acorda às nove (menos aos sábados e domingos), vai à praia e caminha no calçadão todo dia. Malha três vezes por semana na academia e estuda dança moderna. Diz que quer ser modelo, mas quer mesmo é tentar o cinema. Estuda artes cênicas e já fez pontas em várias peças de teatro. Faz o gênero panterinha, esguia, um metro e setenta e dois, tem um andar que atrai todos os olhares. Escapou de ficar anoréxica por puro modismo. Adora cinema. Dança duas ou três vezes por semana nas boates da zona Sul – gosta da Baronetti, vai às vezes às festas da Brazooka e da Paradiso na Casa da Matriz, mas já dançou tango no Ballroom. Gosta de variar um pouco, e tem uma boate pequena que ela adora na Barra, mas também vai aos shows do Circo Voador e da Fundição. Lê a Caras e é sócia de três locadoras. Namorou um cara da pesada, mas agora só quer ficar e curtir. Quer viajar muito e conquistar o mundo.

Leandro Mauro, de dezenove anos, é mulato, alto e bem magro. Tem um rosto expressivo, grandes olhos castanhos e lábios sensuais, mas é tímido com as meninas. Mora em Copacabana, mas foi criado no Méier, de onde se mudou há três anos. O pai dele, administrador regional no bairro de origem, foi nomeado assessor de um deputado federal e atualmente está lotado em Brasília, mas às vezes passa meses seguidos no Rio. Leandro passou para a PUC, paisagismo, embora o pai preferisse direito. Sente falta dos colegas do Méier, substituídos por um grupo de rapazes da classe média alta. Ele não surfa, não pega pesado na academia nem frequenta boates. É amarrado numa menina do prédio onde morava, mas agora ela namora um ex-colega. Está aprendendo a nadar e a dançar – o que detesta – e tem aulas de etiqueta com um personal trainer, sente-se ridículo por isso, mas não reclama. Ainda gosta de jogar botão e assiste ao futebol de domingo, ao Chaves e ao Pânico na tevê. A mãe vive dizendo que ele precisa se formar, amadurecer e refinar o gosto para impressionar as meninas.

Se você fosse um autor de novelas, quantas histórias inventaria a partir desses três personagens?

quarta-feira

Yes, nós temos futebol



  
Melhor que não ter. Já pensou, a gente só pensando no perigo, no assalto, na violência, nas quadrilhas de bandidos – escondidos ou nem tanto – na politicalha que só dá vergonha, e nem uma paixãozinha como o futebol pra alegrar? Nem um motivo pra pular, buzinar, gritar de pura felicidade? Nem um motivo assim como esse pra enlouquecer, xingar com vontade – olha a catarse aí! – e depois vibrar com a vitória?

E se não houver vitória? Ora, ficam umas histórias boas pra contar, que daqui a um tempo vão ficar ainda melhores: coisas pra contar à geração que vem aí e não viu esses prodígios da seleção; coisas pra comentar na mesa do bar, razões pra conviver melhor com vizinhos chatos, parentes abusados, amigos espaçosos. Os passes errados, os chutes sem sorte, as defesas impossíveis – não é pouca coisa. E como acontecem!

segunda-feira

Menor, impossível




Engano

Suas últimas palavras: não está carregado.


Implante

Sopa fervendo. Precisou implantar outra língua.


Frieza

Sujeito frio! Ganhou caixão de aniversário.

quarta-feira

O mundo é um manicômio





Minha amiga Rima me pede para pegar uma bolsa esquecida em casa. Estou bem na hora de chegar ao trabalho, mas não tenho coragem de negar nada a ela, que está dando entrada numa clínica. Ligo para a secretária de meu chefe, mas o telefone dela não atende. Insisto, e uma vozinha fanhosa avisa que o telefone não recebe ligações a cobrar. Não estou ligando a cobrar, mas não há como discutir com uma gravação. Saio pisada e em pouco tempo chego ao edifício onde Rima reside, e que não conhecia ainda. Subo ao sexto andar, no elevador tento de novo o telefone, que dessa vez está ocupado.
Entro na sala e me ofusco de geometrias.
O centro de mesa está no centro da mesa. Não mais ou menos no centro, mas no centro exato, medido a compasso. Os enfeites do aparador foram dispostos em rígido paralelismo e a jarra de flores da mesinha colocada sobre um ponto medido a trena entre uma e outra extremidade do móvel. Quadros em simetria quase dolorosa, o relógio no preciso meio da parede entre uma e outra janela, e as cortinas – céus! As cortinas, que afinal são feitas de tecido, coisa flexível, de caimento gracioso e espontâneo – as cortinas foram milimetricamente pregueadas, dois pra lá, dois pra cá, e caem iguaizinhas feito clones escrupulosos. "Parece a casa do Monk", penso.
No parquê de losangos dois tapetes idênticos se repetem, eqüidistantes, medidos, cópias xerox um do outro, a iguais distâncias das paredes e do centro da sala. Para culminar, foi traçada uma cruz imaginária sobre a porta da entrada e, bem na interseção das duas retas, instalado um trinco meramente decorativo – porque nenhuma lingüeta atingiria tais proporções lineares. Custo a encontrar a fechadura, dissimulada sob uma lâmina de madeira para ficar invisível (com certeza um expediente para não dar o gostinho de fazer uma concessão gritante).
Vou até o quarto um tanto hesitante. O apartamento me faz sentir rejeitada. Há uma hostilidade latente no clima, nas coisas. Como se alguém quisesse me pegar pelo pé. Vou assim mesmo, mas antes não tivesse ido. Se a sala me parecera agressiva, no quarto nem cortinas havia, o espaço em preto e branco era severamente cortado ao meio por uma cama despojada e o único quadro, adivinha, bem no centro da parede diante da cama. Sobre cada uma das mesinhas laterais, uma pequena luminária de aço repetia a outra, ambas retas e centralizadas. Comecei a perder o fôlego. Fui até a pequena cômoda quadrada, laqueada de preto, bem debaixo da janela, e abri a terceira gaveta: lá estava, na mais completa exatidão central, a bolsa que eu tinha ido buscar. Fugi com o coração aos pulos, sufocada, as mãos suando frio. Aquilo não era um apartamento, era uma armadilha, uma prisão, um pesadelo.
Saí rapidamente do prédio, entrei no carro. Em vinte minutos entrava na clínica para doenças mentais onde Rima me esperava aflita. Quando me viu, sorriu aliviada e me estendeu os braços.
— Ah, que bom!
Abriu a bolsa avidamente e suspirou com um sorriso. Arrisquei uma olhada para dentro e não vi nada além do forro bege e dois ou três fechos ecler. Ela tornou a fechar com um estalido a bolsa vazia, que me estendeu de novo.
— Pode levar, por favor, e deixar na mesma gaveta e no mesmo lugar. Muito obrigada.
— Mas você não precisa da bolsa?
— Precisava, sim, precisava muito. Mas agora está tudo bem.
Chegou mais perto de mim e segredou:
— Tinha medo de ter esquecido alguma coisa dentro dela. Você sabe, não ia conseguir dormir se tivesse guardado uma bolsa com algum objeto dentro. Acho extremamente impróprio...
Não ouço mais o que ela ia dizer. Deixo-lhe um beijo nas bochechas, corro para o carro e jogo a bolsa no banco do carona. Tento outra ligação e nada, a vozinha dá seu aviso sem nexo. Começo a me preocupar seriamente, porque estamos em tempo de vacas magras e sou nova no emprego.
No segundo sinal, uma cara larga me assusta a meu lado. O pivete bate no vidro com o que me parece o cano de uma arma e está apressado, de cara feia. Não tenho como fugir, sinal fechado. Com gestos lentos, mãos à vista, desço o vidro.
— Passa a bolsa ou eu atiro!
Com gestos um pouco mais prestos, pego a bolsa bege de couro e entrego a ele. O sinal abre. Arranco, aproveitando um vazio deixado pelo carro da frente. Ainda vejo pelo retrovisor o gesto obsceno que ele me dirige, lá do meio da rua.