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O estádio transbordava de gente.
Uma gente irrequieta, a maioria muito jovem, entre eles numerosos estudantes de
uniforme. Alguns tinham vindo direto da escola, em muitos casos até cabulado as
aulas; na ânsia de conseguir os melhores lugares para ver de perto e interagir
com seus ídolos, tinham chegado horas antes do show. Uma vista geral das
arquibancadas mostrava um auditório fervilhante, colorido e ruidoso, onde aqui
e ali espocavam gritos, grupos que se movimentavam como se dançassem, agitando
corpos e braços, bandeiras, as flâmulas trazidas de casa ou compradas de
camelôs e cambistas, fotos de artistas para serem autografadas. Por sobre o
espaço aberto, voavam ultraleves com faixas flutuantes. De alguns pontos
chegavam sons de altofalantes com trechos de sucessos que agitavam ainda mais a
garotada, num coro meio desencontrado que percorria o círculo de cabeças e
ensandecia quem não pretendesse participar da zoada geral. Empurrando-se e se
ajeitando como era possível, a plateia assustava um pouco os mais pacatos e os
que chegavam em cima da hora e pretendiam conseguir um lugar.
Na rua havia discussões e gritos
ao longo das filas, principalmente nos portões de entrada, onde se acotovelava
uma multidão cada vez mais numerosa. Os seguranças apelavam para a agressão
contra os eternos penetras, duas ou três brigas deixaram narizes machucados e
os vendedores de suvenires e camisetas se misturavam aos cambistas ou se
alinhavam no meio-fio, exibindo seus artigos – pulseiras com fotos, medalhões,
enfeites para usar durante o espetáculo, óculos com desenhos engraçados e
óculos escuros imitando os rayban de
algumas celebridades. Havia instrumentos rudimentares, bongôs, guitarras de
plástico e máscaras imitando a maquiagem dos rapazes de um dos conjuntos. Havia
estalinhos, fogos para soltar durante o show que os seguranças, suados e
irritados, se esforçavam para impedir que entrassem sem muito sucesso.
Purpurina para os cabelos, colares piscantes e serpentinas se misturavam a
bonés, quepes e chapéus de caubói. Havia até saias rodadas ou cheias de franjas
como as de algumas roqueiras enluaradas.
Enquanto isso, vendedores de água,
mate e cerveja se equilibram nas arquibancadas com suas caixas de isopor e aqui
e ali surgem cachorros quentes, pipocas, balas e chicletes, salgadinhos em
cestas, que desde os corredores de entrada eram oferecidos junto com
sanduíches, dizendo as más línguas que nessas cestas e carrocinhas se escondiam
cigarros e pós proibidos. A julgar pelo comportamento de alguns membros da
plateia, talvez isso fosse verdade. Havia além disso alguns casais em pleno
exercício, escondidos entre as colunas e até no meio do povo das gerais.
O primeiro capítulo da reportagem
saiu na segunda-feira, com chamada na primeira página do primeiro caderno e
três páginas inteiras, num caderno especial anexo ao noticiário policial.
Pôncio e seus ajudantes – uma equipe de três focas, um fotógrafo e um
jornalista, o Maia, cuja carreira seguia no anonimato há alguns meses –
conseguiram fotos da época, que foi preciso retocar, e insertaram pequenas
crônicas e relatos sobre a vida dos astros desaparecidos no desabamento.
Acreditavam que a motivação maior para que lessem seu trabalho viria desses
relatos. Muita gente guardava a recordação do acontecido e lamentava a perda
daqueles artistas. Gente de meia-idade, gente que tinha perdido parentes ou
amigos no desastre; pais e mães de família, profissionais, trabalhadores ou
indivíduos no desvio, mas com a memória bem clara dos fatos de dez anos
passados – foi deles que a equipe se valeu para complementar a reportagem,
acrescentando depoimentos às lembranças e aos parcos arquivos de que dispunham.
Mônica Lessa ligou para ele
naquela tarde, voz murcha e elogios econômicos. – Conseguiu o que lhe pedi? –
quis saber Pôncio, percebendo no tom de sua voz um preâmbulo de reclamação.
Mônica porém foi adiante. Não apenas reclamou como, diplomaticamente embora,
acusou Pôncio de distorcer os fatos. – Você dispunha de dados além do que foi
dito, ela rabujou. Sabia o que havia por trás do acidente. Ele argumentou com a
falta de documentos comprobatórios contra o prefeito, a impossibilidade de
acusar alguém sem provas, o processo que teria que enfrentar se acusasse assim
um senador da república. – Hum, ela se limitou a dizer. Vou ver o que consigo –
e desligou sem maiores formalidades.
Líria não se conteve e ligou para
Larissa. Queria ter a exata noção de se, e como, a conversa dos dois teria
repercutido, mas a amiga parecia continuar alheia ao problema e ao
desentendimento. Almoçaram juntas naquele dia, e de fato não notou nada de
diferente na outra. A não ser aquele olhar que às vezes deslizava e parecia
fixar um ponto fora do foco em questão – elas duas e a conversa do momento –
não notou nada diferente em Larissa. – O estádio caiu num momento de glória,
Líria disse de repente. Igualzinho ao meu casamento. Quem diria, uma construção
daquelas. Teve a impressão de que Larissa ficou embaraçada, mas foi só um
instante. Logo fez um carinho em sua mão e chamou o garçom pedindo a conta.
Pôncio abriu os olhos e fixou o
teto por alguns minutos. Dormira mal, tivera dois sonhos estranhos de que
felizmente já não se lembrava em detalhes, mas que o haviam incomodado muito.
Olhou o relógio e pulou da cama num susto. Estava meia hora atrasado para o
encontro com Mônica Lessa, que lhe prometera uma prova decisiva para aquela
manhã, no café ao lado de seu escritório. Procurou o celular para avisá-la do
atraso e passou rapidamente no banheiro. Seu rosto no espelho lhe pareceu
envelhecido, cansado, mas não havia tempo para maiores frescuras além da barba
feita às pressas e da roupa, que felizmente já estava à mão no cabide do
closet. Mal falou com Larissa, que chegava do mercado e abria uma embalagem de
queijo na bancada da copa. – Cuidado pra não se estabacar por aí, ela disse,
meio rindo meio solene – Larissa, a rainha da pose, ele pensou, já no elevador
que ela deixara parado no sexto andar. Desceu experimentando um sentimento
difícil de definir, porque misturava cansaço e uma espécie de ternura que o
surpreendeu um pouco.
Chegou ao café e não viu sua
rancorosa testemunha. – Melhor assim, ruminou, sentando-se e chamando Célio, o
pequeno garçom que o atendia sempre. Sentia fome e ao mesmo tempo um pouco de
náusea. Lembrou que Mônica podia ter desistido de esperá-lo, mas nesse instante
viu-a refletida no espelho ao fundo do balcão e relaxou. Célio já vinha em sua
direção, a bandeja suspensa como sempre fazia, por medo de esbarrar em alguém.
Puro hábito, porque o café estava quase vazio. Sorriu para o baixinho – e aí,
como vai o dia? – e o outro sorriu também, com seu jeito meio tímido meio
malandro – vai como sempre, doutor. Mônica chegou a sua mesa e pediu licença, o
que dava a entender ainda algum ressentimento, mas Pôncio ignorou sua cara
séria e sorriu para ela. – Senta, Mônica, por favor. Quer um café? O pãozinho
daqui é uma delícia, posso pedir pra você também? Ela sentou a sua frente sem
rir, mas com uma expressão mais desanuviada. Não disse sim nem não, de modo que
ele passou a se ocupar do tal pãozinho e seus acompanhamentos.
Enquanto ele comia, a moça abria
a bolsa – uma bolsa preta, enorme – e tirava papéis e objetos que ia pousando
sobre a mesa de madeira. Pôncio evitava prestar atenção nela. Concentrava-se
com devoção no café com leite e no pão dourado e cheiroso que tinha a sua
frente. Descobriu que a leve náusea que sentira antes devia ser um protesto do
estômago vazio. As coisas que lhe davam prazer recebiam dele uma espécie de
embevecimento, quase uma unção, e seu rosto ficava doce e como que iluminado
por dentro. Parece uma criança comendo, Mônica pensou, e por um instante sentiu
uma enorme atração por aquele sujeito que a irritara tanto dois dias antes.
Terminou de arrumar as coisas sobre a mesa e esperou, olhando em volta, um
pouco embaraçada com o impulso do momento. – Conseguiu novos depoimentos? –
perguntou pouco depois, como se procurasse um jeito aceitável de abordar o
jornalista. Ele quase terminara a refeição e balançou a cabeça afirmativamente.
– Achei um cara disposto a falar sobre detalhes que ele jura que só ele
conhece, embora a essa altura eu não acredite muito que possa descobrir grandes
novidades. – Sabe o nome dele? – quis saber Mônica, muito interessada. –
Marcondes, Marcolo, sei lá, algo assim. Mas vamos lá, me mostre o que
conseguiu, disse ele, limpando a boca e as mãos no guardanapo de papel.
Naquela tarde, Laio ficara de
encontrar-se com ele no escritório, onde poderiam conversar com mais calma.
Pôncio queria falar de Líria, da visita e das intenções belicosas que ela havia
manifestado. Mas havia mais que isso. Precisava trocar ideias com o amigo sobre
o que estava sentindo e que passara a incomodá-lo a ponto de perturbar seu
sono. Ninguém melhor que Laio para ajudá-lo a trabalhar aquele sentimento que
era como um corpo estranho. Afinal, tudo começara por causa dele e da amizade
fraterna que os dois partilhavam havia tanto tempo. Por essa amizade havia
quebrado um de seus princípios mais constantes – não se meter na vida alheia. A
revolta que a visão de Líria com outro cara lhe havia causado o impelira a se
comportar como um xereta. Não sentira arrependimento algum até a semana
anterior, quando ela o havia procurado, disposta a limpar seu nome, segundo lhe
dissera, o dedo em seu nariz. Impossível que não estivesse sendo sincera. Havia
muita indignação, muita revolta em sua voz e na atitude com que o enfrentara. –
Ela me disse que ia procurar testemunhas contra mim. Não sei até que ponto...
Laio se levantou e se aproximou
dele, recostando-se à bancada. – Cara, disse, muito sério, acho melhor não
mexer mais com isso. Não acredito que a Líria vá mover uma ação contra você. –
Ah, você não viu os olhos dela, não viu a pose com que me anunciou a decisão.
Mas o que me incomoda mais nem é propriamente a chateação que isso pode me
trazer. O que me preocupa agora é que, pela primeira vez em um ano, estou em
dúvida sobre o que vi. Ela não pode ser assim tão cara de pau, se é mesmo a
pessoa que eu conheci e que estimava tanto. Estavam dentro do carro, e pode ter
acontecido que eu tenha visto uma mulher muito parecida com ela, que afinal não
é um tipo tão raro. Às vezes começo a pensar que minha revolta me fez ver
alguma coisa que talvez não seja verdadeira. E se eu cometi uma injustiça
contra ela, se atrapalhei a vida de vocês sem motivo? Laio voltou para a cadeira
em frente ao amigo e ficou olhando para ele. – Você é um cara de muita coragem,
não? Como pode vir com essa conversa agora? Não acha que seria mais apropriado
calar-se para sempre, como se sugere nas cerimônias de casamento? Pôncio se
sentiu atravessado pelo olhar do outro e baixou a cabeça. – Talvez, disse Laio
pausadamente, talvez você esteja cometendo a segunda maior bobagem de sua vida,
se a primeira foi esse erro de pessoa. Nesse caso, cara, eu me mudaria pra
Namíbia só pra não ter que nos encarar de novo. Pense nisso, Pôncio – e
levantando-se saiu da sala.
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