quarta-feira

Voltando a um assunto que ainda não me convenceu



O seguinte artigo de Caetano Veloso foi publicado domingo passado, dia 27 em sua coluna do Segundo Caderno no jornal O Globo.

Caetano Veloso: "Bethânia"

 

Não concebo por que o cara que aparece no YouTube ameaçando explodir o Ministério da Cultura com dinamite não é punido. O que há afinal? Será que consideram a corja que se "expressa" na internet uma tribo indígena? Inimputável? E cadê a Abin, a PF, o MP? O MinC não é protegido contra ameaças? Podem dizer que espero punição porque o idiota xinga minha irmã. Pode ser. Mas o que me move é da natureza do que me fez reagir à ridícula campanha contra Chico ter ganho o prêmio de Livro do Ano. Aliás, a Veja (não, Reinaldo, não danço com você nem morta!) aderiu ao linchamento de Bethânia com a mesma gana. E olha que o André Petry, quando tentou me convencer a dar uma entrevista às páginas amarelas da revista marrom, me assegurou que os então novos diretores da publicação tinham decidido que esta não faria mais "jornalismo com o fígado" (era essa a autoimagem de seus colegas lá dentro). Exigi responder por escrito e com direito a rever o texto final. Petry aceitou (e me disse que seus novos chefes tinham aceito). Terminei não dando entrevista nenhuma, pois a revista (achando um modo de me dizer um "não" que Petry não me dissera - e mostrando que queria continuar a "fazer jornalismo com o fígado") logo publicou ofensa contra Zé Miguel, usando palavras minhas.

A histeria contra Chico me levou a ler o romance de Edney Silvestre (que teria sido injustiçado pela premiação de Leite derramado). Silvestre é simpático, mas, sinceramente, o livro não tem condições sequer de se comparar a qualquer dos romances de Chico: vi o quão suspeita era a gritaria, até nesse pormenor. Igualmente suspeito é o modo como Folha, Veja e uma horda de internautas fingem ver o caso do blog de Bethânia. O que me vem à mente, em ambas as situações, é a desaforada frase obra-prima de Nietzsche: "É preciso defender os fortes contra os fracos." Bethânia e Chico não foram alvejados por sua inépcia, mas por sua capacidade criativa.

A Folha disparou, maliciosamente, o caso. E o tratou com mais malícia do que se esperaria de um jornal que – embora seu dono e editor tenha dito à revista Imprensa, faz décadas, que seu modelo era a Veja – se vende como isento e aberto ao debate em nome do esclarecimento geral. A Veja logo pôs que Bethânia tinha ganho R$ 1,3 milhão quando sabe-se que a equipe que a aconselhou a estender à internet o trabalho que vem fazendo apenas conseguiu aprovação do MinC para tentar captar, tendo esse valor como teto. Os editores da revista e do jornal sabem que estão enganando os leitores. E estimulando os internautas a darem vazão à mescla de rancor, ignorância e vontade de aparecer que domina grande parte dos que vivem grudados à rede. Rede, aliás, que Bethânia mal conhece, não tendo o hábito de navegar na web, nem sequer sentindo-se atraída por ela.

Os planos de Bethânia incluíam chegar a escolas públicas e dizer poemas em favelas e periferias das cidades brasileiras. Aceitou o convite feito por Hermano como uma ampliação desse trabalho. De repente vemos o Ricardo Noblat correr em auxílio de Mônica Bergamo, sua íntima parceira extracurricular de longa data. Também tenho fígado. Certos jornalistas precisam sentir na pele os danos que causam com suas leviandades. Toda a grita veio com o corinho que repete o epíteto "máfia do dendê", expressão cunhada por um tal Tognolli, que escreveu o livro de Lobão, pois este é incapaz de redigir (não é todo cantor de rádio que escreve um Verdade tropical). Pensam o quê? Que eu vou ser discreto e sóbrio? Não. Comigo não, violão.

Se pensavam que eu ia calar sobre isso, se enganaram redondamente. Nunca pedi nada a ninguém. Como disse Dona Ivone Lara (em canção feita para Bethânia e seus irmãos baianos): "Foram me chamar, eu estou aqui, o que é que há?"

O projeto que envolve o nome de Bethânia (que consistiria numa série de 365 filmes curtos com ela declamando muito do que há de bom na poesia de língua portuguesa, dirigidos por Andrucha Waddington), recebeu permissão para captar menos do que os futuros projetos de Marisa Monte, Zizi Possi, Erasmo Carlos ou Maria Rita. Isso para só falar de nomes conhecidos. Há muitos que desconheço e que podem captar altíssimo. O filho do Noblat, da banda Trampa, conseguiu R$ 954 mil. No audiovisual há muitos outros que foram liberados para captar mais. Aqui o link: http://www.cultura. gov. br/site/wp-content/up loads/2011/02/Resultado-CNIC-184%C2%AA.pdf . Por que escolher Bethânia para bode expiatório? Por que, dentre todos os nossos colegas (autorizados ou não a captar o que quer que seja), ninguém levanta a voz para defendê-la veementemente? Não há coragem? Não há capacidade de indignação? Será que no Brasil só há arremedo de indignação udenista? Maria Bethânia tem sido honrada em sua vida pública. Não há nada que justifique a apressada acusação de interesses escusos lançada contra ela. Só o misto de ressentimento, demagogia e racismo contra baianos (medo da Bahia?) explica a afoiteza. Houve o artigo claro de Hermano Vianna aqui neste espaço. Houve a reportagem equilibrada de Mauro Ventura. Todos sabem que Bethânia não levou R$ 1,3 milhão. Todos sabem que ela tampouco tem a função de propor reformas à Lei Rouanet. A discussão necessária sobre esse assunto deve seguir. Para isso, é preciso começar por não querer destruir, como o Brasil ainda está viciado em fazer, os criadores que mais contribuem para o seu crescimento. Se pensavam que eu ia calar sobre isso, se enganaram redondamente. Nunca pedi nada a ninguém. Como disse Dona Ivone Lara (em canção feita para Bethânia e seus irmãos baianos): "Foram me chamar, eu estou aqui, o que é que há?"

segunda-feira

Caso encerrado



O delegado de plantão não tinha o aspecto desagradável e distante dos que apareciam nos filmes, e era uma pessoa acessível a seu modo. Puxou uma cadeira de assento carcomido. Seus gestos eram desembaraçados e certeiros como se houvesse ensaiado a cena muitas vezes antes. Ou como se dosasse todas as manhãs uma mistura com duas partes de energia e uma de delicadeza para tomar durante o café.
Ela o olhava um tanto relutante e embaraçada. Tinha entrado na delegacia com o discurso pronto, mas ansiosa como uma ave na tela do viveiro. O coração acelerado lhe cortava um pouco o fôlego e sentia dificuldade de articular as frases. Mesmo assim acabaria conseguindo contar a ele o que havia acontecido, as cenas de ciúme doentio, as brigas e as surras – tinha marcas –, os dois anos de seu casamento infeliz regado a cerveja.
À medida que as palavras saíam de sua boca, seus pedaços dispersos há algum tempo pareciam voltar a se reunir. No fim do depoimento estava quase tranqüila, e ao mesmo tempo tinha ficado mais sozinha do que nunca.
Sozinha feito o monumento do meio da praça. Estava livre de tudo, sem envolvimentos com ninguém no mundo e com a vida a céu aberto. Já não sentia nem medo, mas tinha perdido mais que o necessário. Era como se dividir a história que vinha carregando há tanto tempo lhe deixasse enfim espaço para uma outra ela-mesma e esse espaço fosse excessivo.
Não quis a proteção que o delegado lhe ofereceu. Não acreditava que o marido tivesse qualquer intenção de atacá-la fora da cena já conhecida, e não deixara o novo endereço com ele. A essa altura o infeliz devia estar se encharcando, sem ela pra atrapalhar. Também agora, que se olhava como outra pessoa, julgava impossível ser covarde a ponto de ficar com medo de um homem que um dia tinha sido tanto pra ela. Além disso considerava essa proteção uma invasão inútil de estranhos, um complicador desnecessário. A última coisa que desejava era o convívio de estranhos. Queria conviver consigo mesma, curiosa de ver como seria agora. Lamber-se como uma gata menstruada, sentir o gosto do próprio sangue. Ser só e tratar de si mesma.
Enquanto ele ainda estava fora, apressou-se a retirar da antiga casa tudo que deixara para trás na fuga destemperada. Ele não devia demorar, a não ser que tivesse ido para o bar. As primeiras estrelas se acendiam, e aos poucos um vento áspero e inamistoso invadia a sala, vindo da rua. Como em instantâneos, ela via os móveis, a cama revolvida, a janela. Frases sem sentido vinham a sua memória. Não tinha registrado queixa a respeito do carro que tinha comprado com suas economias e ele afinal tinha roubado e escondido dela. Não eram os bens materiais que a preocupavam, mas qual seria sua verdadeira vida depois de tudo.
Nessa noite o sono foi escuro e inquieto, o primeiro sono da nova pessoa, em que ela se olhava de algum ponto secreto enquanto dormia. Não se lembrava de ter sonhado, mas despertou cansada, com um sentimento incômodo e recriminatório que não lhe deu sossego durante toda a manhã.
Não tinham passado ainda vinte e quatro horas, voltou à delegacia para retirar a queixa. Deu um pouco de trabalho, mas acima de tudo foi humilhante por causa da cara de ironia e enfado do delegado, antes tão cavalheiro, a lhe dar conselhos e orientações que não estava pedindo. Não escapou nem da piadinha sobre mulheres que gostam de apanhar.

— Não foi bala perdida – explicava o detetive de plantão a um repórter três dias depois. O delegado está certo de que foi proposital, já mandou prender o suspeito.
— Isso mesmo, confirmou o delegado, saindo da viatura que acabava de encostar na calçada onde o corpo tinha amanhecido com um tiro certeiro no pescoço. Eu avisei. Mas tem muita mulher que é assim, fica dando mole. Completa a perícia e pode recolher ao IML.



The Bill I love

sexta-feira

Leituras erráticas

 
Ler é um monólogo dialogado – o autor fala e o leitor aproveita as deixas, concordando ou não, rebatendo ou assimilando o que mais lhe interessa ou o atrai no texto.
Pode-se ler por necessidade de alguma informação, estudo ou divertimento. Mas assim como um filme que nos toca mais fundo, uma música que se torna tão nossa que a partilhamos com o autor e pesquisamos sobre ele para descobrir que afinidade é essa, um livro pode ser uma peça de arte, um objeto útil ou raro, mas também um ente querido responsável por momentos de muito prazer na vida.
Quase sempre as diferenças individuais determinam a maneira como se lê. A não ser que você esteja frequentando uma oficina sobre o assunto ou fazendo um treinamento para apurar e aproveitar melhor o ato da leitura, normalmente segue a trilha aberta pelo próprio temperamento ou pela própria neura.
 Acredito que a maneira mais usual seja ler um livro de cada vez até o final, a não ser que se desista antes – ou porque não se desenvolveu ainda o hábito de ler e fica difícil concentrar a atenção, ou porque o livro realmente não despertou interesse suficiente, e o tempo é artigo raro demais para ser desperdiçado.
Mas conheço gente que lê o início, salta alguns parágrafos, passa os olhos em outros, tenta entender tudo nessa dinâmica saltadora e segue aterrissando aqui e ali até abrir as últimas páginas para ver como acaba a história. Se houver muita familiaridade com o ato de ler, às vezes se consegue captar assim o sentido geral do texto. Perde-se alguma coisa do significado, mas pescam-se peixinhos menores.
Essa maneira de ler, no entanto, pode ser um prejuízo sério no caso de livros mais densos, estilos ricos e textos muito originais ou recheados de dados interessantes de conhecer. Um leitor experiente sabe o que está perdendo como esse comportamento errático e provavelmente só usará esse modo pouco convencional de ler em textos mais rasos, narrativas simples que não exijam muito de quem lê.
Não é raro que um leitor contumaz leia vários livros de modo simultâneo. E obviamente algum – ou alguns – será(ão) sempre mais apreciado(s) que outro ou outros. O que acontece quase sempre é leitura dinâmica nos casos mais leves e leitura continuada e reflexiva em textos responsa. Costumo fazer isso, sem prejuízo nem culpa. É como se o texto mais denso fosse a matéria principal e o outro, ou outros, a hora do recreio. O que não consigo fazer é ler ao mesmo tempo dois livros importantes ou superinteressantes, já que um texto desses exige atenção integral.
 Nem é só atenção. Um livro envolvente, com o qual nos identificamos e nos causa um prazer todo especial, implica também um envolvimento afetivo que é quase uma paixão. Há livros que se leem para conhecer e outros para conhecer e curtir. Em qualquer dos casos, sempre vale a pena, ainda que seja para se manter em dia com o que está rolando, ganhar e aprofundar conhecimentos ou, quem sabe, acertar numa escolha premiada.  
 Haja tempo e haja livros. Acima de tudo, haja desejo.

*********
 

Liz Taylor

Eu era pouco mais que uma adolescente quando vi um filme dela pela primeira vez. Naquela altura, passou a ser uma espécie de ideal de beleza em que tentava me espelhar. A gente é muito boba nessa idade.
Liz foi um tipo de beleza único, que permaneceu assim até o final de sua vida acidentada. Foi talvez um daqueles casos em que a beleza ajuda e entrava ao mesmo tempo, abrindo caminhos e criando impasses quase intransponíveis a uma apreciação justa do valor artístico do ator ou da atriz. Porque talento e beleza, assim escandalosa como a dela, se confundem, o que não pode acontecer.
O romance e as reconciliações dela com Richard Burton foram uma espécie de novela que eu acompanhava com o coração acelerado. Enfim, fui admiradora dessa mulher que, agora, já não considero nem enigmática, embora reconheça seu valor pessoal, seu esforço profissional e sempre, sempre essa beleza incomum que fez crescer sua carreira e abriu tantas oportunidades a favor e contra ela própria.
Senti a morte de Liz como a de uma amiga antiga, a quem agradeço os momentos bons que me deu de presente. Acima de tudo, ela me fez ver que se pode gostar sinceramente de alguém que viveu sempre muitos quilômetros longe de nós.

quarta-feira

Leitura e crítica


Fernando Pessoa

Em literatura, grandes escritores não são os que fazem grandes revelações. Estas na verdade costumam ser bem raras e precisam ser encaradas com senso crítico.
Verdades arrasadoras ou absolutas, a não ser num contexto de fantasia, não aparecem em textos de qualidade. A realidade em que vivemos mergulhados é quase sempre uma pintura impressionista, de contornos imprecisos que não deixam margem a interpretações radicais.
Ao contrário, um bom autor costuma fazer balançar idéias cristalizadas, jogar alguma luz sobre a importância da diferença e trazer à tona pensamentos que normalmente passariam batidos e se diluiriam sem deixar rastros.
Estamos muito acostumados a pensar por clichês que nos acomodam e tornam essa preciosidade única que é a vida uma espécie parque industrial, onde para tudo há um modelo pronto e ajustado ao preestabelecido.
No entanto, “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”. Ainda que não se concorde com a opinião do autor, o maior ganho da leitura é a aquisição de elementos para reflexão – o que não é pouca coisa. Vale não concordar, é claro.

Aí vai o texto, um pouco polêmico, um pouco original, com algumas palavras grafadas à portuguesa.

A felicidade vem da monotonia
Fernando Pessoa
1888/1935

Em sua essência a vida é monótona. A felicidade consiste pois numa adaptação razoavelmente exacta à monotonia da vida. Tornarmo-nos monótonos é tornarmo-nos iguais à vida; é, em suma, viver plenamente. E viver plenamente é ser feliz.
Os ilógicos doentes riem – de mau grado, no fundo – da felicidade burguesa, da monotonia da vida do burguês que vive em regularidade quotidiana e, da mulher dele que se entretém no arranjo da casa e se distrai nas minúcias de cuidar dos filhos e fala dos vizinhos e dos conhecidos. Isto, porém, é que é a felicidade.
Parece, a princípio, que as cousas novas é que devem dar prazer ao espírito; mas as cousas novas são poucas e cada uma delas é nova só uma vez. Depois, a sensibilidade é limitada, e não vibra indefinidamente. Um excesso de cousas novas acabará por cansar, porque não há sensibilidade para acompanhar os estímulos dela.
Conformar-se com a monotonia é achar tudo novo sempre. A visão burguesa da vida é a visão científica; porque, com efeito, tudo é sempre novo, e antes de este hoje nunca houve este hoje.
É claro que ele não diria nada disto. Às minhas observações, limita-se a sorrir; e é o seu sorriso que me traz, pormenorizadas, as considerações que deixo escritas, por meditação dos pósteros.



 Blogs que fazem falta

Numa terça-feira de maio de 2010, o blog a casa, o amante e o exílio, ora em repouso (que pena), publicou esse encanto:

quando simples

mais que a quietude, o tempo
mais que o tempo, a energia
mais que a energia, o desejo
mais que o desejo, o encanto
mais que o encanto, o impulso
mais que o impulso, o ato
mais que o ato, o gozo
mais que o gozo, a quietude

Fernanda Leturiondo

segunda-feira

Martírio


                               Foto Boris Kossoy.


Era vizinho de nossa família nos tempos de minha infância. Estudou com meu irmão na escola municipal do bairro, e cursavam direito juntos quando resolveu ser padre. Ingressou no seminário, concluiu o curso, e ao fim de uns anos lá estava ele, um missionário radiante de felicidade. Meu irmão, ateu convicto, e eu, meio desligada de tudo que não fosse jornalismo e literatura, não deixamos no entanto de amá-lo, cada qual a seu jeito. Ele correspondia com a doçura que era só dele.
Um dia, os dois na varanda depois de um almoço lá em casa, eu disse a ele que o martírio era uma bobagem sem tamanho. Ele me olhou com um misto de surpresa e repreensão – a repreensão suave de que seria capaz:
— Mas como... O que é que você está dizendo? Já se deu conta? Nem falo só do martírio religioso, há outros...
Eu nem pestanejei. Achava aquilo mesmo. Sentia muito se o decepcionava, mas não via vantagem em morrer por uma causa. Mesmo a vantagem política me parecia questionável. O que seria mais importante: a força moral ou a força do braço que trabalha para mudar as coisas? Não é morrendo que...
Ele tocou meu braço e o apertou um pouco mais do que seria de esperar.
— Peraí, peraí. Você está delirando. Então você acha que vale mais quebrar pedra do que inaugurar um monumento?
— Se ninguém quebrar a pedra, o monumento não sai.
Ele refletiu por uns segundo, sem soltar meu braço. Acho que o olhei de um modo diferente, porque pareceu se dar conta do que estava fazendo.
— Ah, disse, como quem se apercebe, largando meu braço, desculpe, eu... Mas você dizia – e se ajeitou na cadeira.
— Nada, respondi. Nada, não disse nada. Foi só um impulso.
Ele sorriu. O mundo estava em paz outra vez. Levantou a mão e fez um sinal de absolvição diante de mim. Naquele momento percebi: nunca seria meu.

****** 

Ainda o blog da Bethânia

Pois é. Cês leram a coluna do Noblat, no Globo de hoje?
Nunca mais defendo nada sem antes me informar detidamente.
Mas já devia ter desconfiado, neste país de larápios do dinheiro dos outros.

 Agora está tramitando no Congresso uma lei para substituir a Rouanet, que deixa muito espaço para mãos grandes. Essa nova lei deve deixar ainda mais.

sexta-feira

Por que a poesia é tão importante



Carlito Azevedo
 
 Acredito na poesia como uma experiência que não para de se renovar, e ao longo do tempo pode tornar as pessoas melhores. O exercício da poesia induz o autoconhecimento, sem o qual ninguém sai do lugar. Dá a medida e o peso do que é preciso saber, porque ilumina a razão com a experiência mais íntima das coisas e dos acontecimentos. Aliás, poesia é acontecimento.

João Cabral de Melo Neto

Poesia não serve para rimar palavras ou burilar frases de efeito. Ela relativiza as defesas que criamos para nos aprisionar; remove as máscaras com que tentamos nos esconder ou nos engrandecer. Desmistifica toda fantasia que não exista para celebrar, mas para enganar os outros e a nós mesmos. O exercício da poesia revela a inutilidade de nossos álibis. É o par de asas a nosso alcance.

Adilia Lopes

Acredito profundamente na poesia, porque aproxima estranhos e diferentes, semeia um conhecimento para o qual não existem currículos bastantes, desperta o corpo e a alma das pessoas para uma liberdade que nada pode destruir, porque consegue dizer o que nenhuma outra linguagem comunica. Um bom poema é o simulacro de um momento na vida de alguém, com sua grandeza e fragilidade.

Adélia Prado

 

                         

Piotr Sommer

Acredito na força da poesia, capaz de revelar a beleza de uma fruta, um corpo ou uma guerra; uma paixão ou um canto de casa empoeirado, a lama da estrada, as nuvens de chumbo – melhor ainda se o arco-íris não aparecer.

E porque não se impõe nem obriga a nada, acredito que a poesia é a expressão mais verdadeira da difícil liberdade humana.

 NA – Este é um texto reeditado, pelas razões aí abaixo.



O MinC, Maria Bethânia e a poesia necessária

Na p. 2 do Segundo Caderno de O Globo de hoje, 18 de março,  um artigo de Hermano Vianna trata da divulgação da poesia através de Maria Bethânia. De fato, há varios vídeos no YouTube em que ela divulga poemas de Fernando Pessoa, textos de Clarice Lispector ou de Guimarães Rosa. Todos esses vídeos contam com milhares de exibições, e vão para o YouTube sem autorização, pelo entusiasmo de algum espectador de show em que Bethânia declama poemas e textos de prosa poética. 
Diz Hermano Vianna: "Foi pensando nisso, e querendo que a poesia e a prosa de nossa língua tenham melhor presença no ciberspaço, que tomei coragem de propor para Maria Bethânia uma ideia que pensava ser de utilidade pública." O projeto em questão, chamado "'O mundo precisa de poesia' terá sua base em um blog, e se espalhará 'viralmente' por toda a internet. Postaremos os mesmos vídeos no YouTube. Teremos comunidades no Orkut, no Facebook. Acompanharemos tudo via Twitter." E mais adiante, no texto que serve de lead ao artigo, ele afirma: "Acredito nos poderes da criação poética para transformar o mundo, acredito na beleza da língua portuguesa."
O MinC aprovou o projeto, mas existe uma corrente contrária, que acusa Bethânia de se beneficiar indevidamente e não aceita o orçamento de 1,3 mi previsto para sua realização.
A quantia não me parece excessiva, já que o site de divulgação promete atualização diária, os vídeos terão direção de Andrucha Waddington, Bethânia não trabalharia de graça e o custo de produção está compatível com o mercado. Fico imaginando se essa celeuma toda não tem por base apenas o preconceito que tanta gente ainda alimenta contra a poesia, por pura desinformação ou incapacidade de entender o que ela significa.


quarta-feira

Medo e castigo



Tendemos a atribuir a Deus tudo que nos transcende, que pode nos engolir. Não sou nietzscheana, nem marxista e nem mesmo freudiana ortodoxa. Acredito em fenômenos naturais, sim, é claro. Eles estão aí pra ninguém poder duvidar que existam e possam nos embalar ou nos destruir, como acontece com um lindo pôr de sol ou uma tsunami.
Também não creio que se possa confiar cegamente na ciência e seus saberes, sempre um tanto precários e expostos a mudanças. Os próprios cientistas (especialmente os melhores) tratam com ceticismo ou ao menos com reserva qualquer assertiva mais radical sobre o assunto.
Mas então, a quem ou a que atribuir esses fenômenos arrasadores, como os da serra fluminense e, pior ainda, os do Japão? Se fossem castigo para os homens orgulhosos e cheios de si, a gente até entenderia. E os inocentes que se perdem no meio da catástrofe? E as vidas de gente boa, trabalhadora e ordeira, que não causa mal a ninguém nem se julga dona de verdade nenhuma? E as crianças que se apagam no meio disso tudo?
Nunca afirmo nada a esse respeito, porque simplesmente acho que não sabemos de nada. A coisa acontece, é preciso tratar de quem sobrou, minorar as perdas e o desespero dos que não aguentam o peso da desgraça, dar abrigo e comida a quem ficou sem. Acho que os fenômenos naturais acontecem... naturalmente. Acredito que pertencem à mesma ordem que deu origem às diferentes eras da Terra, à mesma ordem que traz o sol e as chuvas, não importando sua intensidade, faz desmoronar encostas pela força da água e fez surgirem o Universo e as galáxias, tantas das quais inacessíveis para nós.
Deus tem alguma coisa a ver com isso? A resposta está além de meu fraco entendimento. Se esse ser sobrenatural pôde mesmo criar tudo que existe, se é ele que decide vida e morte, saúde e doença, não serei eu (nem qualquer semelhante meu) quem vai poder explicar, entender, afirmar ou negar. E no entanto, quanta gente afirma e nega coisas a respeito de Deus. É como se tivessem convivido longamente com ele, conhecessem seu caráter, temperamento e até a eternidade em que se instala. Uns dizem que é infinitamente bom, outros, ao contrário, que é mau e vingativo. Era assim no antigo testamento e em algumas religiões mais primitivas.
Acontecem ainda coisas a que se convenciou chamar milagres: acontecimentos inesperados, que pareceriam impossíveis a nosso entendimento. A maioria deles talvez não passe de embuste, encenação ou ilusionismo. Verdade que não encontramos explicação possível para alguns poucos desses acontecimentos. É claro que há caminhos desconhecidos para nossos olhos, forças com as quais não estamos familiarizados e que nos assustam ou deslumbram por seu alcance. E daí? O que se pode afirmar ou negar com base nelas?
A bondade, o poder ou a sede de justiça que se atribuem a Deus podem bem ser a idealização de sentimentos humanos. O melhor é trabalhar o que existe em nós, desenvolver nossa capacidade de amar, ajudar e compreender, evitar que algum poder nos suba à cabeça e tentar exercer o que nos parece ser a justiça em sua acepção mais plena, a começar pela paz – o que não é nada fácil, mas é possível. E se Deus estiver mesmo nos assistindo, talvez fique contente.

segunda-feira

Palhaços

Palhaços. Tela de Georges H. Rouault.


A imagem clássica do palhaço com uma lágrima escorrendo pelo rosto sempre mexeu muito comigo. Lembro que, muito pequena ainda (lá se vão décadas), ficava contemplando aquela expressão ambígua e me confundia toda. As pessoas diziam que o palhaço era engraçado, que fazia rir, existia para fazer rir. No circo isso se confirmava, o palhaço era mesmo muito engraçado, trapalhão, tropeçando à toa, pregando peças nos outros. Mas então, por que a lágrima?
Ninguém precisa explicar a uma criança o que significa chorar. Quando se chora, alguma coisa vai mal. Mais tarde a gente percebe que também se chora de alegria, mas não era esse o caso do palhaço. Ele continuava portanto um enigma vivo, dançando e pulando, fazendo macaquices e dando cambalhotas, embora sempre houvesse uma lágrima preste a escorrer de seu olho pintado.
Antes de me tornar capaz de abstrações, ouvi o Vesti la Giubba, de Os Palhaços, a ópera de Leoncavallo, e senti na música o quanto aquela imagem inspirava muito mais tristeza do que riso. Meu pai então me contou a história de Canio, traído pela mulher que amava e sofrendo sua perda, mas obrigado a ser alegre porque o público lhe pagava para o fazer rir.
Durante todos esses anos, fui percebendo cada vez melhor, cada vez com mais sutileza, o quanto cada um de nós tem de palhaço, individual e coletivamente. Desde o catador de papel até o dignitário supremo de cada nação. Não vai nisso qualquer intenção pejorativa, que pertenceria a outro departamento. Trata-se da constatação pura e simples de que nenhum de nós consegue realizar nada se não trabalhar em si essa habilidade de palhaço, ou seja, a capacidade de se mostrar disposto, apto e até divertido diante de todos, ainda que esteja desconfortável com a função que o sustenta, a depressão faça crescer nele o incessante desejo de estar sozinho ou alguma perda ou culpa tenha cavado em seu íntimo uma nascente de tristeza que não estanca.
A arte do palhaço se aperfeiçoou a tal ponto entre os homens de todos os quadrantes, culturas, línguas e religiões, que aprendemos a construir o grandioso espetáculo do mundo em parcerias e mutirões de muitos tipos. Aprendemos também a suprir, ainda que precariamente, as carências e dificuldades individuais ou de grupos e classes sociais.
Um dos momentos em que essa capacidade humana de ser palhaço se manifesta de modo paradigmático é o carnaval. Não por acaso, a imagem do palhaço é o símbolo universal dessa festa. Mas o carnaval tem também a função catártica de liberar as pessoas de suas obrigações cotidianas, de permitir que cada um deixe vir à tona o que precisa reprimir durante o resto do ano. Para que isso não prejudicasse a imagem laboriosamente construída nos outros dias, inventaram-se a máscara e o disfarce.
Entre nós a fantasia como disfarce está cada vez mais relegada aos clowns de subúrbio. Será que o fato de esses artifícios estarem caindo em desuso significa que a catarse está perdendo terreno para o papel do palhaço?

quarta-feira

Edição extraordinária



Imagem Brueghel.

Imagino que o anúncio do fim do mundo, nestes dias de comunicação vertiginosa, vai afinal dar uma oportunidade às pessoas para se revelarem do jeito que realmente são. Os ansiosos patológicos e hipocondríacos mórbidos com que a gente sempre esbarra aqui e ali possivelmente vão infartar ou acabar com a própria vida sem ver o gran finale. E sempre haverá quem acredite que é doce morrer no mar. Quem sabe dormindo, com ou sem auxílio do gás.
Mas a maioria talvez promova a maior festa de que já se teve notícia.
Afinal, acabou o primado do dinheiro, em razão do qual as pessoas ralam a vida toda, obedecendo a horários menos ou mais implacáveis. Acabou a obrigação de honrar todos os compromissos, engolir sapo, aturar chefe ou patrão de gênio difícil ou fazer dieta. Casamentos de conveniência ou cansados de tédio podem enfim dar um alívio a seus reféns. Oprimidos e explorados podem afinal realizar seus sonhos mais libertários – e, em alguns casos mais agudos, dar vazão a instintos assassinos sem medo da cadeia. Exibicionistas, pervertidos, libertinos e seres assim em geral meio malvistos pela sociedade podem enfim arrancar as máscaras e se acabar na noitada. Cada um vai saber de si, e ninguém será de ninguém, se não quiser ser. Paralelamente, caretas e reprimidos podem, se lhes aprouver, liberar geral ou então reafirmar seu modo de ser até o fim.
Por outro lado, os crentes, religiosos e místicos de todas as colorações estarão a mil, rezando, orando, cantando em coros talvez desafinados, por causa do açodamento da hora, cumprindo penitências, fazendo procissões improvisadas, pregando enlouquecidos no meio das praças. Como sempre, haverá público para eles, que são especialistas no além; nas horas extremas a credulidade das pessoas, que é diretamente proporcional ao medo, costuma atingir picos nunca dantes navegados. Mas com certeza deve haver também místicos de profunda vida interior que escolherão acabar em recolhimento e silêncio, e para isso irão buscar o sossego das serras e florestas que ainda restarem por aí, porque os templos estarão entupidos de carolas e o ruído das ruas não lhes dará a paz necessária.
Paralelamente, os que se amam estarão juntos curtindo os últimos momentos com a possível serenidade que só amor de verdade pode dar. Apaixonados, recentes ou crônicos, vão querer morrer se amando, transando ou de mãos dadas em seus lugares prediletos. Artistas talvez prefiram esperar o fim praticando suas artes ou curtindo a beleza que deu sentido a suas vidas.
Não me lembro de ter algum dia parado para pensar em que reação teria diante dessa notícia. Mas já que falei no assunto, acho que ia querer reunir as pessoas que mais amo e liberar as comidinhas, os doces, o carinho e a doçura de estarmos juntos, sabe-se lá se pela última vez.

segunda-feira

Literatura




Estante. Serigrafia de Sônia Menna Barreto.


Literatura é um pequeno abismo portátil onde a gente se joga de vez em quando e que vicia mais que qualquer droga. Às vezes, dependendo do regime de governo, pode ser até proibida. Serve para viver a fundo as coisas em que uma pessoa sensata não mergulharia, ou porque são repulsivas, ou porque não têm importância nenhuma de ordem prática.É mais fácil dizer o que a literatura não é: não é útil, não dá dindim, não é pragmática, nem lógica nem relaxa ninguém. E ainda por cima às vezes tira o sono. Para o senso comum, literatura é coisa de maluco mesmo.
Mas quem precisa do senso comum? Para quem escreve, ela é fonte de alguma coisa que fica entre a alegria, o consolo, o alívio, a autoafirmação, o bem-estar do espírito, o refrigério do intelecto e a inefabilidade. Com o tempo, quase a satisfação de uma necessidade orgânica. Sem falar no prazer que é ver um livro publicado, lido e comentado. Mesmo que o escritor faça aquela cara de modesto (é mentira, nenhum escritor é modesto), ele estará se sentindo orgulhoso de sua obra, feliz de ver aquele filho de papel e tinta multiplicado, circulando nas mãos de amigos e estranhos. Para ele, cada exemplar é O Livro. Ou, como diria Cortázar, todos os livros, o livro.

sexta-feira

Escrito por Regina Brett aos 90 anos de idade

 

Para celebrar o meu envelhecimento, certo dia eu escrevi as 45 lições que a vida me ensinou. É a coluna mais solicitada que eu já escrevi. Meu hodômetro passou dos 90 em agosto, portanto aqui vai a coluna mais uma vez:

1. A vida não é justa, mas ainda é boa.
2. Quando estiver em dúvida, dê somente o próximo passo, pequeno.
3. A vida é muito curta para desperdiçá-la odiando alguém.
4. Seu trabalho não cuidará de você quando você ficar doente. Seus amigos e familiares cuidarão. Permaneça em contato.
5. Pague mensalmente seus cartões de crédito.
6. Você não tem que ganhar todas as vezes. Concorde em discordar.
7. Chore com alguém. Cura melhor do que chorar sozinho.
8. É bom ficar bravo com Deus. Ele pode suportar isso.
9. Economize para a aposentadoria começando com seu primeiro salário.
10. Quanto a chocolate, é inútil resistir.
11. Faça as pazes com seu passado, assim ele não atrapalha o presente.
12. É bom deixar suas crianças verem que você chora.
13. Não compare sua vida com a dos outros.. Você não tem idéia do que é a jornada deles.
14. Se um relacionamento tiver que ser um segredo, você não deveria entrar nele.
15. Tudo pode mudar num piscar de olhos. Mas não se preocupe; Deus nunca pisca.
16. Respire fundo. Isso acalma a mente.
17. Livre-se de qualquer coisa que não seja útil, bonita ou alegre.
18. Qualquer coisa que não o matar o tornará realmente mais forte.
19. Nunca é muito tarde para ter uma infância feliz. Mas a segunda vez é por sua conta e ninguém mais.
20. Quando se trata do que você ama na vida, não aceite um não como resposta.
21. Acenda as velas, use os lençóis bonitos, use lingerie chic. Não guarde isto para uma ocasião especial. Hoje é especial.
22. Prepare-se mais do que o necessário, depois siga com o fluxo.
23. Seja excêntrica agora. Não espere pela velhice para vestir roxo.
24. O órgão sexual mais importante é o cérebro.
25. Ninguém mais é responsável pela sua felicidade, somente você...
26. Enquadre todos os assim chamados “desastres” com estas palavras 'Em cinco anos, isto importará?'
27. Sempre escolha a vida.
28. Perdoe tudo de todo mundo.
29. O que outras pessoas pensam de você não é da sua conta.
30. O tempo cura quase tudo. Dê tempo ao tempo.
31. Não importa quão boa ou ruim é uma situação, ela mudará.
32. Não se leve muito a sério. Ninguém faz isso.
33. Acredite em milagres.
34. Deus ama você porque ele é Deus, não por causa de qualquer coisa que você fez ou não fez.
35. Não faça auditoria na vida. Destaque-se e aproveite-a ao máximo agora.
36. Envelhecer ganha da alternativa morrer jovem.
37. Suas crianças têm apenas uma infância.
38. Tudo que verdadeiramente importa no final é que você amou.
39. Saia de casa todos os dias. Os milagres estão esperando em todos os lugares.
40. Se todos nós colocássemos nossos problemas em uma pilha e víssemos todos os outros como eles são, nós pegaríamos nossos mesmos problemas de volta.
41. A inveja é uma perda de tempo. Você já tem tudo o que precisa.
42. O melhor ainda está por vir.
43. Não importa como você se sente, levante-se, vista-se bem e apareça.
44. Produza!
45. A vida não está amarrada com um laço, mas ainda é um presente.

__________________________

Chet, my dear 


quarta-feira

O ano novo deste mês

Desenho de Luiza Maciel Nogueira.

A festa do Ano Novo guarda um link permanente com a vida, a alegria, os planos, os sentimentos e as emoções mais queridas. Não é a toa que toda mensagem traz marolas de doçura, um leve eriçar de adrenalina que nos faz sorrir para tudo e todos. E pode acontecer que a gente nunca se esqueça de um réveillon por sua alegria, de como foi bom abraçar e beijar pessoas queridas, conhecer gente nova, querer bem, ouvir vozes e viver as mensagens do tempo em que ficamos um pouquinho crianças de novo, para agitar o corpo e aproveitar a boa vontade geral.
E pode ser que afinal se queira fazer desse novo pedaço de tempo uma viagem nova, ver lugares diferentes, entrar em caminhos abertos fora das trilhas já tão pisadas de sempre. O dia-a-dia vai endurecendo uma casquinha em volta das coisas que se repetem; os atos habituais, obrigatórios, automatizados, vão tomando um lugar mais extenso e, antes que a gente se aperceba, engolem boa parte de nossa vida, escondem a espontaneidade, o prazer das pequenas coisas.
Mas não é preciso esperar que chegue o dia. Se é tão bom quebrar a rotina e inovar, por que não fazer isso a qualquer momento, criando uma oportunidade?
Velejar por outros mares, mesmo sem iate nem lancha. Mesmo sem sair de casa, do escritório, do carro que não foi trocado, do metrô, do ônibus nosso de cada dia. O que tem que mudar não é o lugar, o que está fora e não depende só de nossa vontade. Dá pra ver com outros olhos, de outro ângulo. Viajar descobrindo o novo, o diferente. Reavaliar o que sempre consideramos desimportante ou indigno de atenção. Pôr à prova nossas convicções inabaláveis, nossas certezas absolutas; questionar as "questões de honra" que, fala sério, acabam nos tornando uns chatos até para nós mesmos. Olhar com olhos de ver as pequenas belezas que cruzam o caminho, atentar ao canto fugidio de pássaros nas árvores da calçada em frente da janela; no riso, na voz, na fragilidade das crianças; em cores, sons e aromas que deixamos passar e podem ser uma fonte de prazer sensível. Reparar nos outros, não com olhos de crítica ou desdém, como tantas vezes acontece, mas para notar o que cada um tem de pessoal e diferente – uma voz bonita, gestos agradáveis de ver, um andar desenvolto, uma beleza física qualquer, um olhar caloroso, um sorriso bom de olhar. Voar nas asas da música à qual temos negado a terminação mais sensível do ouvido, do livro que ainda não lemos, do quadro que não olhamos com atenção, e até de uma fachada bonita, um telhado maneiro, sem outro interesse que contemplar, ganhar alguma coisa que o dinheiro não compra.
Estar em casa, no trabalho ou na rua não significa estar preso, atado, limitado. A não ser que se prefira ficar repetindo “não gosto, não quero, nunca experimentei e não vou começar agora”, há um jeito mais leve de levar a vida. Perceber que a liberdade interior é sem limites é um passo decisivo. O prazer de viver, que parece desbotado porque a vida em volta de nós cegamente se repete, forma uma nuvem espessa, um calo – esse prazer se redescobre e até nos espanta, logo que se fura a casca da rotina e se inaugura um ano novo particular. Nada complicado, caro nem inatingível. Basta estar vivo.