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Larissa apareceu na companhia em
que Líria trabalhava, pouco depois das duas horas da tarde, com uma expressão
marota, parecendo muito feliz. – Surpresa! – disse, da porta da sala dos
recursos humanos, com um buquê de rosas-chá tão lindas, que a outra abriu a
boca de puro espanto. Abraçaram-se como se não se vissem há anos, e Líria,
ainda sem palavras, convidou-a a sentar numa das poltronas junto à mesinha de
centro, no canto onde costumava entrevistar os casos mais complicados. – Meu
Deus, quanta beleza, disse, contemplando as flores. Preciso de uma boa jarra –
e foi até o interfone. – Hoje é dia de festa para mim, disse Larissa. Fiquei
sabendo da novidade e saí na mesma hora para te dar um beijo. – Ficou sabendo?
– É, o Laio me ligou, feliz da vida. A outra baixou um pouco a cabeça, com ar
modesto. – Ah, a gente ainda nem entrou com o requerimento de anulação do
pedido de divórcio. Estávamos esperando se completarem os dois anos da
separação, porque antes disso não é possível se divorciar. No início... – Ainda
bem! Essa lei é bem sábia. Porque depois de concedido, não há como anular.
Ainda bem! Líria sorriu pela primeira vez. – Ai, Larissinha, estou tão feliz! –
mas logo se lembrou da história toda, da culpa de Pôncio, e não disse mais
nada.
Larissa percebeu o que passava
por sua cabeça. Mais do que uma intuição, leu na expressão da amiga o
ressentimento ainda bem forte, o esforço para não demonstrar o que sentia. –
Estou aqui também em uma missão diplomática, disse, sorrindo. Pôncio me pediu
que falasse com você, que desse a ele uma chance de tentar apagar o mal que
causou. E acrescentou, diante do gesto vivo de Líria, antes que ela pudesse
dizer alguma coisa – está disposto a te pedir perdão, pedir perdão a vocês
dois, e quer marcar um encontro lá em casa, se vocês concordarem. O silêncio
não impediu que Larissa repetisse o convite, dessa vez junto de Líria, abaixada
ao lado de sua poltrona. Não havia outro jeito, era preciso aceitar o
armistício. Depois se veria como as coisas iam ficar.
Para sua surpresa, Pôncio chegou
ao café e encontrou Lauro Munhoz sentado a uma das mesas laterais na companhia
de Mônica Lessa. Faltavam ainda vinte minutos para as seis horas. Procurou o
dono da casa com um rápido olhar, mas não o viu atrás do balcão. A mesa de
fundo lá estava, com a placa de reserva. Lauro ficou de pé para receber o
jornalista. Mônica não parecia contrafeita e cumprimentou-o até com certa
alegria. O senador esperava que ele sentasse, mas Pôncio preferiu mudar o rumo
que as coisas estavam tomando e convidou-os a segui-lo. – Reservei um lugar
mais discreto para nossa conversa, senador. Creio que vai gostar – e
encaminhou-se para a mesa escolhida, desejando que o gravador estivesse lá.
Munhoz pareceu surpreso, titubeou um pouco, mas a atitude resoluta e gentil do jornalista
não lhe deixava outra saída senão fazer sua vontade. Na verdade, Mônica parecia
mais surpresa que ele. Pôncio esperou que todos sentassem e ocupou seu lugar,
fechando um triângulo nada amoroso. Mantinha uma expressão cordial, porém um
tanto solene, e observava os dois, que recebiam mais luz que ele, graças a uma
lâmpada discreta e providencial, embutida na coluna, que casualmente lançava
seu foco sobre as duas cabeças. Esperou que Lauro falasse primeiro. Olhava-o de
modo encorajador, e o senador não demorou a começar um discurso cauteloso de
meias-palavras que o bom entendedor ia decifrando sem dificuldade. Mônica
estava muda e, agora sim, parecia meio embaraçada.
O ex-prefeito, ou prefeito do
estádio, como ficou conhecido na época do desastre – por conta do qual havia
perdido feio para o concorrente da oposição na eleição seguinte – tentava achar
uma brecha, talvez um momento em que o rosto de Pôncio estivesse menos atento,
os olhos menos perscrutadores, fitos nos seus. Limpou os óculos, pigarreou,
ajeitou-se na cadeira. – Sou todo ouvidos, senador – disse Pôncio, que começava
a achar aquilo divertido. Mônica dava sinais de inquietação, e ele percebia os
gestos acelerados com que acendeu um cigarro e logo o apagou com a sola do
sapato. – Lauro, disse ela, a certo ponto, sem conseguir se conter, deixa que
eu falo com ele. Pôncio vai entender.
Olhou para ela à espera de uma
surpresa. Suas intuições não costumavam deixá-lo na mão. Então o arquiinimigo
agora era de novo Lauro, nesse tom ameno, até meio meloso com que ela o
pronunciara. Mentalmente via os dois numa conversa que pouco a pouco ia se
tornando mais amistosa; via também alguma coisa que corria das mãos do senador
para as dela, e via um sorriso e uma troca de olhares. Esperou que ela por sua vez
se ajeitasse melhor, – Essas cadeiras parecem meio incômodas, não? – ele disse,
num tom inocente, e ela sorriu sem vontade, – Não se preocupe, está tudo bem.
Tomou fôlego – com muita graça, como Pôncio pôde observar – e continuou a falar
suavemente da antiga amizade – fomos como irmãos – e de sua inconformidade
diante daquele mal-entendido todo. – Cheguei realmente a pensar que Lauro havia
surtado, quando percebi que fugia de falar comigo e me deixava naquele sufoco,
sem recursos para salvar minha mãe, coitada, que Deus a tenha. De um relance,
pareceu a Pôncio que ela ia chorar, mas logo retomou o controle e continuou
falando sobre um sofrimento atroz e a falta que aquela amizade iria fazer em
sua vida, até que se revoltou e decidiu tomar uma atitude radical contra ele. –
Agi de acordo com meu senso de justiça, mas nós não somos mesmo ninguém para
julgar os atos alheios.
A esse ponto, acreditando que
tinha acertado em cheio em suas suposições, ele observou a expressão embevecida
com que Lauro Munhoz a contemplava. A coisa já foi longe, concluiu para si
mesmo, e agora passamos do suborno à chantagem emocional – uma mulher sozinha e
carente, um cara com cacife para reconquistá-la em nome do passado e uma ou
duas noites de amor bandido. Agora o senador tecia sua lenga-lenga e deixava
transparecer um coração tão sensível que Pôncio teve vontade de lhe dar as
costas. – Ninguém sofreu tanto quanto eu com aquela tragédia – ousou afirmar,
mas diante do olhar severo do jornalista aliviou um pouco o tom e emendou – a não
ser é claro aquelas pobres famílias enlutadas e os que morreram ou se feriram
gravemente no sinistro.
Um homem que chama aquilo de
sinistro numa conversa de café merece cadeia, pensava ele, quando Mônica
desferiu o golpe final sobre sua ira, que se tornava difícil de conter, – eu e
Lauro conversamos muito, durante horas, antes que ele tomasse a inciativa de
procurar você. Eu o encorajei, disse a ele que você é um homem de bem, um cara
ético, e que na certa compreenderá, afinal nem tudo na vida é o que parece ser,
e quando nos enganamos devemos ter uma chance de corrigir nossos erros. É o que
estou tentando fazer. E mesmo sabendo o quanto é difícil voltar atrás, depois
dos atos que cometemos, estou disposta a desmentir minhas declarações sobre o
Lauro – e os dois deram-se as mãos descaradamente.
Pôncio olhou para ele e perguntou
– quanto o senhor vai me dar para desmentir minhas declarações também? – ao que
o ex-prefeito teve um gesto difícil de definir, antes de enfiar a mão no bolso
do paletó e lhe estender um cheque de dois milhões de reais. Pôncio olhou a
assinatura do cheque, mas não era o nome de Lauro que constava na última linha
à direita, e a conta pertencia a uma firma de que nunca ouvira falar. Então
devolveu o cheque ao senador, – não aceito cheques, doutor Lauro, e este
indagou, com voz clara e cordial, – prefere então em espécie?
***
Na cantina da companhia, Líria
falava com Ana Rosa e Marlon sobre a reconciliação. – Você tinha dito que os
laços não tinham sido só desfeitos, que estavam cortados a tesoura e não havia
volta, lembrava Marlon, com certo mau gosto. – Foi um tombo, uma decepção.
Achei que Laio estava convencido de que era um corno, que tinha tomado aversão
a mim. – E o que foi que ele fez esse tempo todo? Ela agitou a cabeça numa negativa
enérgica, – não sei, mas também não estou interessada em saber. Nem durante o
tempo em que acreditava que não haveria volta possível me preocupei com isso.
Ninguém me informou de nada a esse respeito, e se alguma coisa de sério tivesse
acontecido na vida dele, eu na certa ficaria sabendo. – Ah, é verdade,
confirmou Ana, os abutres adoram uma fofoca. – Isso não foi problema para mim,
e não vai ser agora. Ele é um homem, pode ter se virado por aí, não vou sair
investigando. Também senti falta de uma trepada de vez em quando. Fui eu quem o
expulsou de minha vida, não tinha como reclamar. Se ele fez isso, acho que não
foi nada para durar, não criou outros laços, mas pode ser que tenha obedecido à
natureza, não sei. Lembrou então da natureza de Marlon, e olhou para ele, que
lhe pareceu pensativo. Mas o que estava dito não tinha como ser apagado. – Está
na hora, disse Ana, levantando e dirigindo-se à caixa.
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