sexta-feira

Uma história incompleta cap.9

9

Larissa apareceu na companhia em que Líria trabalhava, pouco depois das duas horas da tarde, com uma expressão marota, parecendo muito feliz. – Surpresa! – disse, da porta da sala dos recursos humanos, com um buquê de rosas-chá tão lindas, que a outra abriu a boca de puro espanto. Abraçaram-se como se não se vissem há anos, e Líria, ainda sem palavras, convidou-a a sentar numa das poltronas junto à mesinha de centro, no canto onde costumava entrevistar os casos mais complicados. – Meu Deus, quanta beleza, disse, contemplando as flores. Preciso de uma boa jarra – e foi até o interfone. – Hoje é dia de festa para mim, disse Larissa. Fiquei sabendo da novidade e saí na mesma hora para te dar um beijo. – Ficou sabendo? – É, o Laio me ligou, feliz da vida. A outra baixou um pouco a cabeça, com ar modesto. – Ah, a gente ainda nem entrou com o requerimento de anulação do pedido de divórcio. Estávamos esperando se completarem os dois anos da separação, porque antes disso não é possível se divorciar. No início... – Ainda bem! Essa lei é bem sábia. Porque depois de concedido, não há como anular. Ainda bem! Líria sorriu pela primeira vez. – Ai, Larissinha, estou tão feliz! – mas logo se lembrou da história toda, da culpa de Pôncio, e não disse mais nada.
Larissa percebeu o que passava por sua cabeça. Mais do que uma intuição, leu na expressão da amiga o ressentimento ainda bem forte, o esforço para não demonstrar o que sentia. – Estou aqui também em uma missão diplomática, disse, sorrindo. Pôncio me pediu que falasse com você, que desse a ele uma chance de tentar apagar o mal que causou. E acrescentou, diante do gesto vivo de Líria, antes que ela pudesse dizer alguma coisa – está disposto a te pedir perdão, pedir perdão a vocês dois, e quer marcar um encontro lá em casa, se vocês concordarem. O silêncio não impediu que Larissa repetisse o convite, dessa vez junto de Líria, abaixada ao lado de sua poltrona. Não havia outro jeito, era preciso aceitar o armistício. Depois se veria como as coisas iam ficar.


Para sua surpresa, Pôncio chegou ao café e encontrou Lauro Munhoz sentado a uma das mesas laterais na companhia de Mônica Lessa. Faltavam ainda vinte minutos para as seis horas. Procurou o dono da casa com um rápido olhar, mas não o viu atrás do balcão. A mesa de fundo lá estava, com a placa de reserva. Lauro ficou de pé para receber o jornalista. Mônica não parecia contrafeita e cumprimentou-o até com certa alegria. O senador esperava que ele sentasse, mas Pôncio preferiu mudar o rumo que as coisas estavam tomando e convidou-os a segui-lo. – Reservei um lugar mais discreto para nossa conversa, senador. Creio que vai gostar – e encaminhou-se para a mesa escolhida, desejando que o gravador estivesse lá. Munhoz pareceu surpreso, titubeou um pouco, mas a atitude resoluta e gentil do jornalista não lhe deixava outra saída senão fazer sua vontade. Na verdade, Mônica parecia mais surpresa que ele. Pôncio esperou que todos sentassem e ocupou seu lugar, fechando um triângulo nada amoroso. Mantinha uma expressão cordial, porém um tanto solene, e observava os dois, que recebiam mais luz que ele, graças a uma lâmpada discreta e providencial, embutida na coluna, que casualmente lançava seu foco sobre as duas cabeças. Esperou que Lauro falasse primeiro. Olhava-o de modo encorajador, e o senador não demorou a começar um discurso cauteloso de meias-palavras que o bom entendedor ia decifrando sem dificuldade. Mônica estava muda e, agora sim, parecia meio embaraçada.
O ex-prefeito, ou prefeito do estádio, como ficou conhecido na época do desastre – por conta do qual havia perdido feio para o concorrente da oposição na eleição seguinte – tentava achar uma brecha, talvez um momento em que o rosto de Pôncio estivesse menos atento, os olhos menos perscrutadores, fitos nos seus. Limpou os óculos, pigarreou, ajeitou-se na cadeira. – Sou todo ouvidos, senador – disse Pôncio, que começava a achar aquilo divertido. Mônica dava sinais de inquietação, e ele percebia os gestos acelerados com que acendeu um cigarro e logo o apagou com a sola do sapato. – Lauro, disse ela, a certo ponto, sem conseguir se conter, deixa que eu falo com ele. Pôncio vai entender.
Olhou para ela à espera de uma surpresa. Suas intuições não costumavam deixá-lo na mão. Então o arquiinimigo agora era de novo Lauro, nesse tom ameno, até meio meloso com que ela o pronunciara. Mentalmente via os dois numa conversa que pouco a pouco ia se tornando mais amistosa; via também alguma coisa que corria das mãos do senador para as dela, e via um sorriso e uma troca de olhares. Esperou que ela por sua vez se ajeitasse melhor, – Essas cadeiras parecem meio incômodas, não? – ele disse, num tom inocente, e ela sorriu sem vontade, – Não se preocupe, está tudo bem. Tomou fôlego – com muita graça, como Pôncio pôde observar – e continuou a falar suavemente da antiga amizade – fomos como irmãos – e de sua inconformidade diante daquele mal-entendido todo. – Cheguei realmente a pensar que Lauro havia surtado, quando percebi que fugia de falar comigo e me deixava naquele sufoco, sem recursos para salvar minha mãe, coitada, que Deus a tenha. De um relance, pareceu a Pôncio que ela ia chorar, mas logo retomou o controle e continuou falando sobre um sofrimento atroz e a falta que aquela amizade iria fazer em sua vida, até que se revoltou e decidiu tomar uma atitude radical contra ele. – Agi de acordo com meu senso de justiça, mas nós não somos mesmo ninguém para julgar os atos alheios.
A esse ponto, acreditando que tinha acertado em cheio em suas suposições, ele observou a expressão embevecida com que Lauro Munhoz a contemplava. A coisa já foi longe, concluiu para si mesmo, e agora passamos do suborno à chantagem emocional – uma mulher sozinha e carente, um cara com cacife para reconquistá-la em nome do passado e uma ou duas noites de amor bandido. Agora o senador tecia sua lenga-lenga e deixava transparecer um coração tão sensível que Pôncio teve vontade de lhe dar as costas. – Ninguém sofreu tanto quanto eu com aquela tragédia – ousou afirmar, mas diante do olhar severo do jornalista aliviou um pouco o tom e emendou – a não ser é claro aquelas pobres famílias enlutadas e os que morreram ou se feriram gravemente no sinistro.
Um homem que chama aquilo de sinistro numa conversa de café merece cadeia, pensava ele, quando Mônica desferiu o golpe final sobre sua ira, que se tornava difícil de conter, – eu e Lauro conversamos muito, durante horas, antes que ele tomasse a inciativa de procurar você. Eu o encorajei, disse a ele que você é um homem de bem, um cara ético, e que na certa compreenderá, afinal nem tudo na vida é o que parece ser, e quando nos enganamos devemos ter uma chance de corrigir nossos erros. É o que estou tentando fazer. E mesmo sabendo o quanto é difícil voltar atrás, depois dos atos que cometemos, estou disposta a desmentir minhas declarações sobre o Lauro – e os dois deram-se as mãos descaradamente.
Pôncio olhou para ele e perguntou – quanto o senhor vai me dar para desmentir minhas declarações também? – ao que o ex-prefeito teve um gesto difícil de definir, antes de enfiar a mão no bolso do paletó e lhe estender um cheque de dois milhões de reais. Pôncio olhou a assinatura do cheque, mas não era o nome de Lauro que constava na última linha à direita, e a conta pertencia a uma firma de que nunca ouvira falar. Então devolveu o cheque ao senador, – não aceito cheques, doutor Lauro, e este indagou, com voz clara e cordial, – prefere então em espécie?

***

Na cantina da companhia, Líria falava com Ana Rosa e Marlon sobre a reconciliação. – Você tinha dito que os laços não tinham sido só desfeitos, que estavam cortados a tesoura e não havia volta, lembrava Marlon, com certo mau gosto. – Foi um tombo, uma decepção. Achei que Laio estava convencido de que era um corno, que tinha tomado aversão a mim. – E o que foi que ele fez esse tempo todo? Ela agitou a cabeça numa negativa enérgica, – não sei, mas também não estou interessada em saber. Nem durante o tempo em que acreditava que não haveria volta possível me preocupei com isso. Ninguém me informou de nada a esse respeito, e se alguma coisa de sério tivesse acontecido na vida dele, eu na certa ficaria sabendo. – Ah, é verdade, confirmou Ana, os abutres adoram uma fofoca. – Isso não foi problema para mim, e não vai ser agora. Ele é um homem, pode ter se virado por aí, não vou sair investigando. Também senti falta de uma trepada de vez em quando. Fui eu quem o expulsou de minha vida, não tinha como reclamar. Se ele fez isso, acho que não foi nada para durar, não criou outros laços, mas pode ser que tenha obedecido à natureza, não sei. Lembrou então da natureza de Marlon, e olhou para ele, que lhe pareceu pensativo. Mas o que estava dito não tinha como ser apagado. – Está na hora, disse Ana, levantando e dirigindo-se à caixa.


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