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Loredo preparara uma reunião
informal com o Castro e dois juízes amigos do Canhedo, em volta de uma galinha
ao molho pardo que os deixaria predispostos a fornecer todos os esclarecimentos
necessários e ainda solidificava a amizade recente, selada a cerveja gelada.
Dias depois eles se encontrariam de novo, dessa vez na presença do comandante
Hartmann, de Pôncio, incluído agora na roda dos ilustres, e do estrogonofe de lagosta
do Canhedo, que era de lamber os dedos. O redator-chefe criava um ambiente
favorável a seu repórter, mas não reivindicava privilégios. Sequer pensaria em
prevaricar, oferecendo qualquer presentinho aos magistrados ou ao comandante,
um cara que transpirava lisura e lealdade. Para todos os efeitos, tratava de se
informar em detalhes sobre as chances de Pôncio e, entre uma e outra pergunta,
introduzia observações cuidadosamente formuladas para impressionar bem os
ouvintes.
Loredo aliás não descansava,
enviando mensagens pelo correio eletrônico, fazendo ligações, reunindo-se com a
assessoria jurídica. O caso de Pôncio mobilizava um pequeno exército solidário,
enquanto a imagem pública de Lauro Munhoz se deteriorava a cada dia – diga-se a
bem da verdade, com a ajuda do Jornal
e de uma rede ligada a partidos adversários. Das sombras do esquecimento
surgiam desafetos insuspeitados para contribuir na divulgação de excessos de
todo tipo praticados pelo ex-prefeito, agora conhecido como o ogro, graças a sua fama e a sua cara
de poucos amigos, de sobrancelhas felpudas. Como dizia porém o Castro,
assumindo a pose de causídico padrão, – não devemos nos iludir com esse repúdio
à figura do senador. Estamos fartos de ver corruptos premiados e a iniquidade
tratada como virtude. – Isso parece coisa de Rui Barbosa, ria Cosme.
Marconolo só respondeu às
mensagens depois de receber a quarta ou quinta. Assim mesmo, seu silêncio só
foi quebrado para repetir o já dito. Cosme e o Castro então se mobilizaram para
descobrir seu paradeiro e partiram para uma visita informal. Foram e tornaram a
ir até a ruazinha sem saída na Tijuca, mas não havia ninguém em casa. Na
terceira investida, uma empregada os atendeu e informou que o patrão estaria de
viagem. Marconolo escorregava como quiabo. Castro conseguiu então um mandado de
busca. Intimidado com o rumo que as coisas iam tomando, resolveu aparecer.
Canhedo, o gourmet,
revelou-se uma figura ainda mais singular e cheia de truques do que o próprio
Loredo imaginava. Cosme não tardou a perceber a versatilidade espantosa com que
ele circulava das bancadas de sua cozinha para os bastidores da prefeitura.
Tinha prometido ao amigo de infância que havia de encontrar o caminho para
provar até que ponto a administração do Munhoz tinha sido desonesta e omissa.
Lembrava-se de cada mancada do ex-prefeito, de cada esperteza, por causa das
interferências que criaram dificuldades a seu trabalho, na época ligado aos
estaleiros que funcionavam – alguns ainda hoje em atividade, embora seus ganhos
tenham diminuído sensivelmente – no estado do Rio de Janeiro. Antes que Loredo
esfregasse um olho, Cosme tinha conseguido de Canhedo informações sobre sua
vida e suas andanças pelos estados do Brasil até 1998, quando resolveu ficar no
Rio de uma vez por todas.
É verdade que os soldadores –
profissão original de Canhedo – eram até então bem remunerados em serviços de
construção naval, que exigiam deles uma formação impecável e lhes rendiam horas
extras e serviços em condições especiais, com adicionais por insalubridade e
insegurança. Parte da renda do gourmet
viera daí, mas o detetive logo percebeu que Canhedo não era homem de se
contentar com o possível. Abriu ele mesmo uma empresa do ramo, trabalhou por
contrato para o setor naval durante mais de vinte anos e levou o calote de praxe
do governo federal. Um processo que rolou na justiça durante mais de cinco
anos, até que, um ano antes, teve ganho de causa para o reclamante que, deitado
em sua rede do norte ao lado de Rainha, como chamava sua atual namorada,
comemorou com ela as benesses que o futuro prometia. Eram mais de três milhões
de reais, mais juros e correção monetária, garantidos por um contrato cujo
original ele guardava em seu cofre-forte, instalado por trás da adega
climatizada de sua cozinha.
Munhoz entrava nessa história
como um vilão que, conhecendo os altos valores de seus contratos, multara
seguidamente sua empresa por instalações insalubres – uma alegação fantasiosa, naquele
ramo de atividade, e uma intromissão indébita na jurisdição, que de direito
pertencia à fiscalização federal – e uso indevido de terrenos municipais não
autorizados.
Havia ainda entre os dois uma
pendenga antiga, dos anos 70, quando haviam se encontrado em Salvador, Munhoz
em viagem de turismo e Canhedo, recém-casado, naquele tempo ainda empregado de
um pequeno estaleiro, cuja mulher fora seguidamente assediada pelo jovem
político que Lauro ainda era. Os dois tinham trocado uns socos sem maiores
consequências, separados aos dez ou quinze minutos de briga pela turma baiana
do deixa-disso, certa de que não valia a pena apostar em nenhum dos dois, já
que não pareciam ferozes o suficiente para divertir a galera. Só isso talvez
não justificasse a prolongada implicância do político, mas o prefeito era do
tipo popularmente conhecido como carne-de-pescoço. Não desistia fácil de
prejudicar um desafeto, e com o Canhedo a coisa rendeu até que, cansado de ser
incomodado por aquela autoridade mesquinha, o empresário decidiu acionar a
prefeitura por abuso de poder.
Canhedo parece ter nascido com o
traseiro virado para a lua. Apoiado por amigos influentes, ganhou também essa
ação – coisa de um acumulado de três centenas de milhares de reais. Descobriu
nesse período que o prefeito conseguira reunir um número notável de inimigos,
durante sua gestão, e Cosme gostou de saber disso. Munido de endereços e nomes,
partiu para suas investigações e teve grande sucesso em ao menos seis delas.
Tinham agora mais seis testemunhas contra o
ogro.
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