quinta-feira

Uma história incompleta cap 15

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Loredo preparara uma reunião informal com o Castro e dois juízes amigos do Canhedo, em volta de uma galinha ao molho pardo que os deixaria predispostos a fornecer todos os esclarecimentos necessários e ainda solidificava a amizade recente, selada a cerveja gelada. Dias depois eles se encontrariam de novo, dessa vez na presença do comandante Hartmann, de Pôncio, incluído agora na roda dos ilustres, e do estrogonofe de lagosta do Canhedo, que era de lamber os dedos. O redator-chefe criava um ambiente favorável a seu repórter, mas não reivindicava privilégios. Sequer pensaria em prevaricar, oferecendo qualquer presentinho aos magistrados ou ao comandante, um cara que transpirava lisura e lealdade. Para todos os efeitos, tratava de se informar em detalhes sobre as chances de Pôncio e, entre uma e outra pergunta, introduzia observações cuidadosamente formuladas para impressionar bem os ouvintes.
Loredo aliás não descansava, enviando mensagens pelo correio eletrônico, fazendo ligações, reunindo-se com a assessoria jurídica. O caso de Pôncio mobilizava um pequeno exército solidário, enquanto a imagem pública de Lauro Munhoz se deteriorava a cada dia – diga-se a bem da verdade, com a ajuda do Jornal e de uma rede ligada a partidos adversários. Das sombras do esquecimento surgiam desafetos insuspeitados para contribuir na divulgação de excessos de todo tipo praticados pelo ex-prefeito, agora conhecido como o ogro, graças a sua fama e a sua cara de poucos amigos, de sobrancelhas felpudas. Como dizia porém o Castro, assumindo a pose de causídico padrão, – não devemos nos iludir com esse repúdio à figura do senador. Estamos fartos de ver corruptos premiados e a iniquidade tratada como virtude. – Isso parece coisa de Rui Barbosa, ria Cosme.
Marconolo só respondeu às mensagens depois de receber a quarta ou quinta. Assim mesmo, seu silêncio só foi quebrado para repetir o já dito. Cosme e o Castro então se mobilizaram para descobrir seu paradeiro e partiram para uma visita informal. Foram e tornaram a ir até a ruazinha sem saída na Tijuca, mas não havia ninguém em casa. Na terceira investida, uma empregada os atendeu e informou que o patrão estaria de viagem. Marconolo escorregava como quiabo. Castro conseguiu então um mandado de busca. Intimidado com o rumo que as coisas iam tomando, resolveu aparecer.


Canhedo, o gourmet, revelou-se uma figura ainda mais singular e cheia de truques do que o próprio Loredo imaginava. Cosme não tardou a perceber a versatilidade espantosa com que ele circulava das bancadas de sua cozinha para os bastidores da prefeitura. Tinha prometido ao amigo de infância que havia de encontrar o caminho para provar até que ponto a administração do Munhoz tinha sido desonesta e omissa. Lembrava-se de cada mancada do ex-prefeito, de cada esperteza, por causa das interferências que criaram dificuldades a seu trabalho, na época ligado aos estaleiros que funcionavam – alguns ainda hoje em atividade, embora seus ganhos tenham diminuído sensivelmente – no estado do Rio de Janeiro. Antes que Loredo esfregasse um olho, Cosme tinha conseguido de Canhedo informações sobre sua vida e suas andanças pelos estados do Brasil até 1998, quando resolveu ficar no Rio de uma vez por todas.
É verdade que os soldadores – profissão original de Canhedo – eram até então bem remunerados em serviços de construção naval, que exigiam deles uma formação impecável e lhes rendiam horas extras e serviços em condições especiais, com adicionais por insalubridade e insegurança. Parte da renda do gourmet viera daí, mas o detetive logo percebeu que Canhedo não era homem de se contentar com o possível. Abriu ele mesmo uma empresa do ramo, trabalhou por contrato para o setor naval durante mais de vinte anos e levou o calote de praxe do governo federal. Um processo que rolou na justiça durante mais de cinco anos, até que, um ano antes, teve ganho de causa para o reclamante que, deitado em sua rede do norte ao lado de Rainha, como chamava sua atual namorada, comemorou com ela as benesses que o futuro prometia. Eram mais de três milhões de reais, mais juros e correção monetária, garantidos por um contrato cujo original ele guardava em seu cofre-forte, instalado por trás da adega climatizada de sua cozinha.
Munhoz entrava nessa história como um vilão que, conhecendo os altos valores de seus contratos, multara seguidamente sua empresa por instalações insalubres – uma alegação fantasiosa, naquele ramo de atividade, e uma intromissão indébita na jurisdição, que de direito pertencia à fiscalização federal – e uso indevido de terrenos municipais não autorizados.
Havia ainda entre os dois uma pendenga antiga, dos anos 70, quando haviam se encontrado em Salvador, Munhoz em viagem de turismo e Canhedo, recém-casado, naquele tempo ainda empregado de um pequeno estaleiro, cuja mulher fora seguidamente assediada pelo jovem político que Lauro ainda era. Os dois tinham trocado uns socos sem maiores consequências, separados aos dez ou quinze minutos de briga pela turma baiana do deixa-disso, certa de que não valia a pena apostar em nenhum dos dois, já que não pareciam ferozes o suficiente para divertir a galera. Só isso talvez não justificasse a prolongada implicância do político, mas o prefeito era do tipo popularmente conhecido como carne-de-pescoço. Não desistia fácil de prejudicar um desafeto, e com o Canhedo a coisa rendeu até que, cansado de ser incomodado por aquela autoridade mesquinha, o empresário decidiu acionar a prefeitura por abuso de poder.
Canhedo parece ter nascido com o traseiro virado para a lua. Apoiado por amigos influentes, ganhou também essa ação – coisa de um acumulado de três centenas de milhares de reais. Descobriu nesse período que o prefeito conseguira reunir um número notável de inimigos, durante sua gestão, e Cosme gostou de saber disso. Munido de endereços e nomes, partiu para suas investigações e teve grande sucesso em ao menos seis delas. Tinham agora mais seis testemunhas contra o ogro.

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