quarta-feira

Uma história incompleta

3

Desligou o computador às três e tanto da madruga, como gostava de dizer. Nada tinha a ver com coisa nenhuma. Os parcos registros que encontrara em redações de jornais e emissoras de televisão, artigos e dados da época, não batiam com a maior parte das mensagens que tinham chegado aos borbotões nos últimos dias. Ler aquilo tudo estava lhe tomando um tempo longo demais, e como quase nada podia ser aproveitado, passara a trabalhar com amostragens, escolhendo o que à primeira vista lhe parecia de alguma consistência. Lia três ou quatro linhas e separava a mensagem para uma leitura mais atenta ou a atirava às sombras virtuais da lixeirinha na coluna à esquerda. O máximo que conseguira tinha sido um esquema cheio de buracos e dois ou três depoimentos que lhe pareceram autênticos. Em resposta, consultou os leitores em questão sobre uma entrevista cara a cara, para a qual propunha ir a seu encontro, mesmo que em outra cidade. Avisava que estaria munido de um gravador e, se lhe fosse permitido, publicaria fotos desses leitores prestimosos na série do jornal e, mais tarde, no livro em que pretendia falar do assunto.
Na manhã seguinte, logo depois do café, rumou para o escritório, uma sala alugada a duas quadras de casa. Queria trabalhar em paz, sem telefones ou campainhas interrompendo o fio de seus pensamentos, sem mulher e crianças desviando sua atenção a todo instante. A sala ficava num prédio meio decadente, um quinto andar de frente para o mar de Copacabana; um lugar onde estava no meio de tudo e nada o perturbava. Ligou o computador e consultou a caixa de correio.
Milagrosamente, a primeira mensagem que encontrou, vinda de uma tal Mônica Lessa, pareceu-lhe mais substanciosa que todas as outras. A moça contava tintim por tintim o que vira no dia do desastre, e não fora pouca coisa. Era um relato minucioso e ao mesmo tempo econômico, que explicava as coisas de modo claro e direto. Falava da perda de uma amiga de infância que estava com ela na ocasião, da dor que a fizera cair em depressão e das imagens terríveis que guardava nitidamente na memória. Uma longa terapia lhe havia mostrado que nada atenua mais uma dor ou uma lembrança assim arrasadora do que falar sobre ela, muito e durante muito tempo, sem se censurar e sem calar o que mais nos perturba. Uma talking cure, como no tempo de Freud e suas histéricas. Ainda que tudo esteja bem presente ainda, dizia o texto de Mônica, quero aproveitar a oportunidade não só para contribuir com seu propósito de encontrar afinal o(s) culpado(s), como para chamar a atenção para a omissão do prefeito daquele tempo, Lauro Munhoz Clemente, que se revelou um homem incrivelmente frio, indiferente à dor daquelas pessoas e de suas famílias. Muitos deles deviam ser eleitores seus, e no entanto – a mensagem continuava por mais um parágrafo nesse tom ressentido, e Pôncio ficou pensando no significado daquilo. De qualquer modo, valia a pena procurar um contato pessoal e tentar extrair dessa quase vítima e testemunha ocular detalhes que fossem úteis para precisar melhor a história toda.
Pôncio achava que cada acontecimento tem uma cara própria, assim como as pessoas têm temperamentos e idiossincrasias específicas. Por trás de um acidente sempre existem falhas, fraquezas não esclarecidas depois, porque as pessoas se defendem, se protegem e evitam pôr a bunda na janela numa hora dessas. Os dados que Mônica ainda podia fornecer, as coisas que poderia esclarecer lhe serviriam, estava certo disso. Lauro Munhoz era agora um senador da república, e isso era um dado bem interessante. Chegaria a hora de procurar esse personagem chave, e era bom que fosse limpando o caminho para chegar lá com o mínimo de obstáculos.
Mônica Lessa era uma mulher bonita, alta e discreta. Chegou exatamente à hora marcada, reconheceu-o de pronto – estou de blusa vinho e calça jeans, ele dissera – e os dois se acomodaram numa das mesas do bar quase vazio. Ainda não eram cinco horas da tarde. Pediram um chope gelado para ele e um suco para ela. Reparou no olhar rápido com que a moça fez o reconhecimento do ambiente, observando-o também de alto a baixo numa única piscada. Aparentava descontração e sorria com facilidade. Pôncio imaginou-a digitando a mensagem e se felicitou por ter marcado aquele encontro. Ainda que não conseguisse avançar muito em sua pesquisa, o que era sempre uma incógnita, acreditava que Mônica lhe seria útil de algum modo. Não era o tipo de pessoa que se desloca e vai a um encontro daqueles sem ter muito a dizer. Além de inspirar confiança, era muito segura de si, bem articulada e tinha uma voz agradável, bem modulada, que lhe dava prazer ouvir.
— Bom, ela disse, estou aqui. – Eu também, ele respondeu, e os dois riram. – Acho que estamos pensando na mesma coisa, ela arriscou. Pôncio jogou a cabeça para trás e sorriu de leve – espero que sim. – Você quer saber alguma coisa sobre o desabamento do estádio do Rio Comprido, não é? – E você me disse em sua mensagem que tinha boas informações a esse respeito. Ela assentiu de leve e se endireitou na cadeira.
— Bem, começando do começo: cheguei lá meia hora antes do show, para escolher um bom lugar e ver os cantores e os músicos entrando, talvez ver um deles de perto, falar com ele, pedir um autógrafo. Eram vários artistas de sucesso, bons cantores, músicos da pesada. Eu era bem jovem, e comigo foram duas primas adolescentes, Marina, amiga do tempo de escola, e uma outra amiga, Margarida. O estádio foi ficando muito cheio, e quando o show estava para começar, o primeiro conjunto afinando as guitarras e o público se agitando nas arquibancadas, Margarida começou a sentir falta de ar. Era uma crise de asma, uma coisa que às vezes acontecia a ela, e tivemos que sair do meio da multidão. Foi difícil, mas chegamos ao corredor de circulação depois de uns quinze minutos, ela respirando com dificuldade e as meninas se lamentando por causa do show e dos lugares perdidos. Disse a elas que não podia deixar as duas no meio do povo, que tinham ido sob minha responsabilidade, e que a mãe delas ia ficar brava comigo se fizesse isso. Marina, minha amiga de escola, tinha ficado no estádio, mas não quis deixá-la encarregada de olhar as meninas. Quem respondia por elas era eu. Parece que estava adivinhando. Margarida foi parar na emergência de um hospital próximo, e nós com ela.
— Então você não estava lá dentro quando – não, não estávamos lá dentro. Graças a Deus e à asma de Margarida. Pôncio se mexeu, impaciente. – Sei o que você está pensando, disse Mônica, sorrindo. Mas espera um pouco, já chego lá. Deixamos Marina sendo medicada e voltamos ao estádio, porque ninguém se conformava de perder o show assim, queríamos ao menos aproveitar um pouco de nossas entradas. Não conseguimos voltar para junto de Marina, e nos acomodamos como foi possível. Mas pouco depois do acesso às arquibancadas, ouvimos um ruído como um estrondo abafado e a estática dos microfones disparou, de modo que paramos e tapamos os ouvidos, até que outro estrondo mais forte nos deu a sensação de que o chão estava tremendo e nós voltamos para a rua. Depois disso, foi aquela desgraça que se viu e até hoje ninguém explicou direito. Minha tia, a mãe das meninas, foi pessoalmente agradecer a Margarida por sua alergia respiratória, que salvou nossas vidas e a dela própria. Lamento muito a perda de Marina, embora reconheça que teria sido ainda pior se tivesse deixado as primas em sua companhia. Mas não era só isso que eu tinha pra lhe dizer.
Daí em diante, o depoimento de Mônica se tornou um laudo acusatório contra o prefeito Lauro Munhoz. Pôncio ouvia tentando discernir o que era puro ódio do que seria verdade naquele discurso. Era uma fala controlada, sóbria e quase sem pausas, mas os olhos dela haviam se tornado mais escuros e sua expressão estava carregada. Falava baixo, mas às vezes sua respiração parecia se alterar, as narinas delicadas se moviam como as de um cavalo depois da corrida e os lábios se contraíam. Imaginou quase divertido que podia estar lidando com uma assassina em potencial, quem sabe uma paranoica obcecada pela ideia de acabar com o prefeito e sua carreira.
Ela porém se explicou. Tinha uma razão pessoal para detestar o sujeito: na época da eleição, acreditava piamente nas qualidades de político de Lauro, do qual era amiga pessoal; ajudou em sua campanha, conseguiu muitos votos entre parentes, amigos e colegas de trabalho. Eleito, Lauro abusou da confiança dela, que esperava um lugar na prefeitura com um salário à altura de suas aptidões de arquivista e comunicadora. Na época, lutava contra a doença da mãe, um câncer de mau caráter, resistente ao tratamento. Ele no entanto não cumpriu as promessas e, mais grave ainda, não repôs o rombo que sua campanha tinha deixado nas economias dela, uma soma considerável, o que a levou ao desespero quando percebeu que o prefeito evitava atender seus telefonemas e a deixava fora da agenda de contatos.

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