Ao contrário do que se imagina, quando
sumariamente se condena o ódio, o que se está fazendo não é um julgamento, mas
uma redução. O que merece julgamento e condenação são os atos, não os
sentimentos. Parodiando a letra do Aldir, os sentimentos e as manhãs são
espontâneos, “levantam do escuro e ninguém pode evitar”.
Há muitas formas de amor, e há também muitas
formas de ódio – sentimentos muito mais parecidos do que se imagina a uma
primeira visada. Por isso o falso impasse: amor e ódio seriam opostos,
antagônicos. Um anularia o outro. Por definição – acredita o senso comum – amor
quer somente o bem do outro, ódio somente seu mal.
Qualquer conceito – acima de tudo os que o
senso comum consagra – requer revisões periódicas. Acontece que entre um e
outro extremo as variações são infinitas. Amor e ódio são como dois rios que
nascem juntos e correm muito próximos durante a maior parte de seus cursos; por
serem líquidos, qualquer chuva forte ou movimento mais brusco faz com que suas
águas se misturem. Escandalizar-se com essa afirmação me parece uma daquelas
hipocrisias ingênuas (mas não inofensivas) que se repetem todos os dias por
hábito ou falta de crítica, que são os dois maiores amigos da mentira e do
equívoco.
Quando se idolatra alguém a ponto de não poder
duvidar desse alguém e por ele ou ela se pratica qualquer ação ou se faz
qualquer sacrifício, é provável que já se tenha começado a surdamente odiar
esse alguém. É fácil ver por quê: o ídolo, o ser que se idealiza, se alimenta
da carne, da vida e do sangue daquele que o idolatra.
Amores como o materno e o paterno não estão
excluídos desses percalços. Quantas vezes se experimenta impaciência extrema
com um filho que impede nosso lazer e nossa liberdade de ir e vir, atrapalha
nossas conversas, consome o tempo que gostaríamos de estar aplicando em
atividades mais lucrativas e agradáveis do que limpar um bumbum ou inventar
expedientes para alimentar um guri
inapetente, que ainda por cima se mostra malcriado e teimoso. Quantas
mães e pais empenham anos de sua vida (às vezes os melhores, enquanto ainda se
é jovem e cheio de planos e sonhos) para cuidar de um filho deficiente,
prejudicado por um acidente ou um distúrbio de origem genética e sem esperança
de cura? O senso de responsabilidade e a compaixão têm um papel importante
nesses casos, mas a animosidade em relação a essas pessoas sempre existirá como
reação natural de um ser humano impedido de viver plenamente a própria vida.
Dirão talvez que isso não é ódio. Eu digo que é uma de suas manifestações mais
brandas e civilizadas. Querem a prova? Se faltar autocontrole, formação moral e
maturidade emocional, como nos tristes casos que conhecemos bem do dia-a-dia,
teremos mais uma criança abandonada, rejeitada e perdida para si mesma e para a
sociedade. Ou, mais escancaradamente, o ódio paterno ou materno se manifestam
na violência exercida sobre essa criança.
Assim como acontece com o ódio extremado,
também o amor extremado é destruidor. Como a recíproca é sempre verdadeira quando
se trata de sentimentos, a lógica do amor absoluto exige em troca que o ser
amado seja tudo aquilo que se atribui a ele e supõe que também o amado seja
integralmente dedicado, grato, confiável, amante e encantado com quem o ama
tanto. Mas isso não acontece, por vários motivos. Primeiro porque esse tipo de
relacionamento é ilusório, idealizado, falso e impossível. Segundo porque o
outro é e será sempre o outro, por mais que se projetem nele os próprios
sentimentos.
Além desses motivos intransponíveis, o amor
que se autodenomina perfeito destrói o ser amado porque não lhe deixa ar e
espaço suficiente para a liberdade de se amar a si mesmo e se realizar como ser
único. E se na prática não se exigir essa simetria total e compreender que o
outro pode sentir diferente e experimentar outras necessidades, começa a se
formar a tsunami do ciúme menos ou mais declarado, da possessividade reprimida
– e olha o ódio despontando aí, minha gente!!!
Entre pessoas ditas civilizadas, capazes de
autocontrole e autocrítica, o ódio talvez se mostre mais sob a forma de raiva,
implicância ou até se volte contra o sujeito que o experimenta, como um
escorpião que injeta em si mesmo o próprio veneno. Mas ainda nesses casos, ele
pode também eclodir em toda sua força, primário e trágico.
Não há como se iludir: ninguém está isento de
ódio, nem é incapaz de manifestá-lo. Ódio não é a outra face da moeda do amor,
mas seu continuum. E como certos venenos, em pequenas doses pode ser
imprescindível para mover a vida, que sem ele ficaria estagnada num pântano de
sentimentalismo e mesmice.
A grande sacada em relação à energia desses
sentimentos, capazes de destruir seu objeto, é que ela pode também se
metamorfosear em força criativa. Nesse caso, em que se torna capaz de
reinventar a visão de mundo de uma pessoa e modificar a realidade, essa energia
pode ser responsável pelo surgimento de obras de arte, grandes invenções,
descobertas importantes para a humanidade.
Mas essa metamorfose real da força da libido
faz parte de uma outra conversa: aqui entram fatores diversificados e difíceis
de precisar, porque têm origens variadas. Um deles é com certeza um traço que
diz respeito à educação, que muitas vezes não coincide com o conceito do senso
comum.
2 comentários:
Concordo plenamente com você, amiga!
Beijo.
De inteiro acordo com você, Dade!
Beijos do Ivan.
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