Nunca fiquei sabendo o nome dela. Apareceu pela primeira vez numa tarde
de sábado em que eu tinha saído pra procurar um CD novo do Tom Jobim, nem me
lembro mais o ano. Parou a meu lado diante de uma vitrine e quando a vi parecia
absorta entre os títulos da lista dos mais vendidos. Era ainda muito jovem,
morena clara, e tinha os olhos espertos e escuros e o cabelo de cachos
desalinhados presos numa espécie de rabo-de-cavalo. Apesar de vivo, o olhar da
garota não se fixava em quase nada e parecia pairar sobre as coisas e as
pessoas, o que me chamou logo a atenção.
Não demorei muito a sair em busca de outra loja que vendesse CDs e logo
esqueci dela. Mas quando entrava na porta larga e iluminada, de olho nas
prateleiras coloridas, quase tropecei em seu calcanhar: ela me cortou o passo
como se eu fosse invisível. Lembro que perdi momentaneamente o equilíbrio e me
apoiei na estante mais próxima, que veio abaixo com toda a carga de CDs em
exposição. Nunca mais esqueci o embaraço e o mal-estar daquele momento.
Ela continuou seu caminho como se nada tivesse acontecido. Imaginei que
fosse surda, porque ninguém na loja e adjacências deixou de olhar em minha
direção. Creio que desisti do CD; só lembro que voltei para casa o mais rápido
que pude, tomei um banho morno e fui pra baixo das cobertas ver um filme do Tom
Waits.
Não posso precisar quantos meses depois, ela me apareceu de relance num
corredor de supermercado. Meu coração fez uma extra-sístole. Vinha com o mesmo
penteado, a mesma cara de quem não está nem aí. Não parava em nenhuma gôndola,
andava a esmo olhando ora para um lado ora para outro, e resolvi ficar a um
canto observando seu jeito de andar e agir. Foi até o fim do corredor e dobrou
à esquerda. Achei que estaria em segurança dobrando para o outro lado, e entrei
numa transversal. Parei no balcão das aves e segui para os congelados
semiprontos, minha salvação durante um período sem ajudante em casa. Levantei
uma caixa de lasanha quatro queijos e ia colocá-la no carrinho quando um outro
cheio de compras veio zunindo em direção ao meu. Alguém devia ter empurrado
aquela cesta de arame com rodas, e mal tive tempo de evitar o choque, mas isso
me valeu uma torsão no pulso que me fez chorar de dor. Um gerente do mercado
veio todo solícito me ajudar, guardou minhas compras e me encaminhou a uma
clínica das vizinhanças. Tudo que ficou em minha memória foi o rosto da morena,
como sempre alheia e distraída, com seus cachos desalinhados sobre a nuca,
cruzando a minha frente na hora em que eu entrava no carro, que o rapaz se
dispôs a dirigir por mim.
Quase um ano deve ter se passado entre esse encontro e o terceiro. A
visão da moça me causou sintomas de pânico, e eu me perguntava se não seria
melhor procurar um bom psiquiatra para corrigir aquela reação despropositada –
ou descobrir se estava tendo visões. Mas dessa vez venci o mal-estar e me
dirigi a ela. Olá, eu disse, e tive que repetir, tocando seu ombro. Nesse
momento seu olhar cruzou displicente com o meu como se nos víssemos todos os
dias. Até sorriu brevemente, e logo me virou as costas e entrou numa
lanchonete, enquanto uma moto de pizzaria passava tão rente a mim que fui ao
chão com minhas sacolas de roupas, que voaram em todas as direções, e ralei
seriamente o joelho.
Cheguei quase a esquecer a figura da moça morena, tantos anos se
passaram. Quase vinte, sei lá. Meus filhos já estavam adultos, eu divorciada e
com um namorado e um emprego novos. Mudara também de bairro, estava no Leblon,
num apartamento claro e arejado de onde podia ver o mar pela janela de meu
quarto.
Quase não percebi sua presença, de pé na beira da calçada, esperando
que o sinal fechasse para os carros. Não tinha mudado absolutamente nada, os
cabelos penteados do mesmo jeito, o olhar irrequieto e o ar ausente. Senti um
desamparo de criança que se perde dos pais num lugar estranho. Quis voltar para
casa, mas tinha um encontro com Lauro na choperia da rua ao lado. Segui meu
caminho pisando com firmeza, não fosse algum skatista me atirar longe ou algum
ônibus subir na calçada. Cheguei a rir de mim mesma, que ridículo, uma mulher
de quarenta e poucos anos com medo de fantasma. Ia contar a ele, íamos rir
juntos daquela história maluca.
Na esquina seguinte, vi que a morena entrava na choperia. Olhei em
volta curiosa e meio assustada. Não havia ninguém atrás de mim, só uma
garotinha de rua que me chamou de tia assim que pus os olhos nela. Atravessei
com passo um pouco menos firme. Entrei na choperia e Lauro me acenou da mesa
junto à janela. Dei uma olhada rápida para conferir – ela não estava à vista.
Ele veio a meu encontro e disse que acabara de chegar. Estava louca pra contar
tudo, os encontros anteriores também, as coincidências desastradas. Ia dizer a
ele, brincando, que tivesse cuidado, quando uma garçonete moreninha e meio
descabelada se aproximou de nós e com ar ausente, sem nos olhar nem perguntar
nada, e pousou a nossa frente uma tulipa suada grande, com colarinho, e um
míni, como sempre gostei. Não toma esse chope, Lauro – foi última coisa que me
lembro de ter dito antes do choque. Acordei dias depois e ele me falou da bala
perdida – uma só, certeira, ninguém descobriu de onde vinha.
Lauro é meu melhor amigo. Vem ler para mim todo fim de semana,
conversa, me traz DVDs, muita música – ele sabe como gosto de música, da
popular a Mahler e Schöenberg. Faz questão de dispensar minha acompanhante e se
responsabiliza por mim. Insiste para me levar ao cinema ou ao teatro, diz que a
cadeira de rodas não atrapalha em nada, que há milhares de pessoas assim pelo
mundo e todos passeiam e se divertem, que não entende por que não saio de casa.
Mas toda vez que olho a rua ela está circulando pelo calçadão ou sentada no
banco junto à entrada do prédio. Já se passaram quinze anos, e ela não mudou
nada.
6 comentários:
Mais do que o arauto das más notícias, ela é a verdadeira boceta de Pandora.
Manoel Carlos
Ui, ui, ui, Dade,
e novamente dá um frio na espinha
beijos e ótimo fim de semana
Nossa, Dade, esse merecia ir para a tela! Genial.
Beijos
Exatamente, Manoel, disse-o bem.
Beijo.
Pois é, Vais, dá mesmo. Até em mim.
Beijo.
Ai, quem me dera, Maria Teresa!
Beijão.
Postar um comentário