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Em sua sala, Cosme ruminava
hipóteses fantasiosas em torno de uma história real. Ouvia um concerto para
violino e celo, tão baixo que dificilmente alguém além dele seria capaz de
ouvir. Um ouvido de tuberculoso, como dizia seu pai. Sorriu de leve, lembrando
o velho de quem herdara o nome, e apenas um músculo da face esquerda se movia,
quase imperceptível. Seu pai tinha sido um político atuante, de grande
prestígio, responsável por uma mudança radical na câmara estadual e por um
período brilhante na administração do Amazonas. Infelizmente, essa fase marcada
pela lealdade e por uma justiça digna do nome, mas que durara bem pouco. Não
lhe faltavam inimigos, gente insatisfeita, que precisava das sombras que ele
dissipava com sua retidão; gente que precisava do contrabando, do tráfico de
drogas e da prostituição para manter o poder econômico e o prestígio.
Pouco depois do assassinato do
velho deputado, sua família precisou fugir às pressas, de madrugada, num barco
em que levavam o necessário para a viagem e alguma roupa. Ficaram em Manaus a
casa espaçosa construída pelo avô, as cabeças de gado e as criações, os
empregados que nem ao menos conseguiram indenizar decentemente. Lembrava
daquela noite como de um pesadelo. Tinha deixado pela metade um doutorado em
ciências políticas e trazia consigo seus diplomas, um pouco de dinheiro achado
no cofre e algumas jóias que acompanhavam a família há três gerações. Quase
nada, levando-se em conta que vinham para o Rio de Janeiro sem saber ao certo a
quem iriam recorrer. A mãe e a irmã pouco falavam desde a morte do pai, e a
angústia delas lhe dava forças para enfrentar a situação.
Na agenda do pai, tinham
encontrado dois endereços de conhecidos no Rio. Um deles, antigo colega de
universidade, não morava mais no lugar anotado. O segundo era o Castro, filho
de outro deputado do estado, que estudara e se formara no Rio. Deviam ao Castro
o quarto de hotel em que se abrigaram no início de sua estada na cidade e as
primeiras refeições sólidas daqueles dias. Também deviam a ele, embora em outro
contexto, o casamento de sua irmã com um amigo do advogado, viúvo havia cinco
anos. Castro não os apresentara com segundas intenções, tudo fora obra do
acaso, e Cosme gostava de repensar aquela história, que lhe soava um pouco
romanesca, além de ter dado uma última alegria a sua mãe, já muito doente.
Pensava na beleza um tanto
melancólica daquele encontro entre a cabocla esguia e muito jovem, meio
assustada com a cidade desconhecida, e o homem dezoito anos mais velho que ela,
de ar um pouco triste e coração generoso, que se dedicara a Maria Rosa como a
uma filha. Ele a reconduziu ao curso interrompido pela fuga de Manaus e ajudou
a firmar sua carreira de juíza. Independente e desenvolta, a moça era agora
dona da própria vida e objeto de uma paixão que deixava o irmão detetive um
pouco apreensivo, porque conhecia bem demais a natureza humana e o ciúme do
cunhado lhe parecia excessivo. Enfim, o jogo estava feito e cada um seguia seu
rumo de um modo que deixaria o pai orgulhoso.
O relógio da sala ainda bate as
horas, mas Pascal já não pula de susto a cada badalada: limita-se a levantar as
orelhas e olhar com certo enfado aquela coisa que interrompe seus cochilos e o
distrai da bolinha que perseguia. Líria está atarefada em sua sala, na empresa
onde trabalha, às voltas com alguns casos complicados de férias atrasadas e
reivindicações que é preciso analisar com cuidado. Tem pressa. Daqui a uma ou
duas horas espera a chegada de Pôncio, que iria passar pela rua da empresa e
tinha se oferecido para levar-lhe uns documentos esquecidos em casa pela manhã.
Um bom amigo, sempre disposto a ajudar.
Abanou a cabeça, lembrando do
mal-entendido do ano passado. Agora podia rir daquela bobagem e da chateação
que lhe causara. Na verdade, nem lembrava mais, e por associação pensou na
maldade que tinha feito com ele, tentando atrapalhar a reportagem sobre o
estádio do Rio Comprido. Seu sorriso se alargou e ela imaginou se algum dia
seria capaz de confessar aquilo. Mas que nada, ficava uma coisa pela outra,
estavam quites, e agora eram de novo grandes amigos.
O livro de Pôncio tinha sido
lançado na semana anterior, numa festa cheia de gente, um sucesso absoluto.
Ainda mais que o mandato de Lauro Munhoz tinha sido cassado e ele respondia por
seus crimes na justiça comum – uma grande vitória, num país onde os poderosos costumam
escapar da punição por seus crimes. A mídia entronizara o jornalista como herói
da pátria. Todo mundo queria entrevistá-lo, seu livro encabeçava a lista dos
mais vendidos pela segunda semana e Larissa estava grávida. Pôncio não cabia em
si de contentamento, e esse estado beatífico o tornava ainda mais amável que de
costume.
Chegou à empresa lá pelas quatro
e meia, quando Líria e Marlon tomavam o café de praxe na cantina. – Venha tomar
um café com a gente, Pôncio, ela disse, levantando-se para beijá-lo e
apresentando-o ao colega e seu amigo. Não notou a expressão do outro, mas
estranhou que ele não tivesse aceitado o convite e logo que lhe entregou os
papéis tivesse se despedido de um modo que lhe pareceu meio brusco. – Vai ver
ele está cheio de trabalho, não esquenta, disse Marlon, terminando seu café.
Trouxe o que você pediu, não trouxe? Então, mulher, o que você queria mais?
Líria deu de ombros e os dois voltaram ao trabalho.
Pôncio no entanto entrou no carro
incomodamente contrariado. Tinha reconhecido no colega de Líria o sujeito que
afinal causara tanto mal-estar entre eles e quase dera fim ao casamento de
Laio. Então era ele, ainda? Passou o resto da tarde perturbado com a ideia de
que afinal estava certo. E tanto isso o incomodou que procurou por Cosme, a
essa altura já envolvido em outro caso. Precisava ter certeza. Não aguentaria
continuar convivendo com os amigos sabendo daquilo, ainda que fosse difícil de
acreditar que – queria saber de tudo, fosse qual fosse o resultado. – Não é
todo dia que se encontram amigos iguais a eles, explicava ao detetive. Quero
saber toda a verdade, aconteça o que acontecer. – E pretende reeditar sua
atuação do ano passado? – quis saber Cosme, meio preocupado com o resultado da
investigação. Não prefere acreditar que tudo não passa de coincidência? Se ela
fosse culpada do que você imagina, não acha que seria meio estúpido ter te
apresentado ao cara?
Cosme, como sempre, tinha razão.
Mas Pôncio tinha uma cabeça obstinada e, ainda que não pretendesse repetir o
que tinha feito antes, queria tirar tudo a limpo. Assim, quinze dias depois ele
recebia um relatório completo a respeito do belo rapaz com quem Líria, todos os
dias úteis, repartia uma mesa da cantina. Assim ficou sabendo que Marlon dos
Santos Macieira Lima frequentava algumas vezes por semana motéis como o Mon
Bijoux em companhia de um parceiro – nem sempre o mesmo, mas quase sempre um dos
três cujos nomes vinham listados abaixo. Havia ainda, mais raramente, uma
parceira eventual, de nome Ana Rosa Araújo Alcino.
Agora Pôncio, que respirara aliviado
com a notícia, tinha outro dilema – contar ou não contar à amiga o que tinha
descoberto sobre seu amigo. Larissa tentou em vão convencê-lo de que chegava
uma fofoca, e que duas talvez Líria não lhe perdoasse, mas era mais forte que
ele, e achou um jeito de explicar à amiga quem era aquele sujeito tão simpático
com quem ela tomava cafezinho todo dia.
Surpreso, viu Líria rir muito
dele, confirmando alegremente que Marlon era gay, sim, assumidíssimo, e também um ótimo rapaz, colega exemplar,
um cara leal e um papo maravilhoso. Meio desconcertado, sorriu amarelo e achou
melhor encerrar o assunto, mas antes queria saber por que de vez em quando ele
preferia a companhia de uma mulher. – Ah, é uma longa história, ela explicou.
Ana é apaixonada por ele, acha que pode despertar o príncipe encantado que ele
não sabe que é. Não há o que tire isso da cabeça dela. – Mas que bobagem, ele
comentou. Essa moça está perdendo tempo, se iludindo atoa. – Pois é, comentou
Líria, com um jeitinho coquete. Eu já disse isso a ela, mas – claro, claro, não
se pode interferir nessas coisas, ele disse.
Despediram-se calorosamente, e
mais tarde ele engrandecia o espírito delicado de Líria, capaz de compreender e
manter a amizade com um cara de vida assim complicada. Larissa não disse nada e
mudou de assunto.
Em casa, enquanto esperava a
chegada do marido escovando de leve o pelo de Pascal, Líria revia a experiência
de uma tarde em que decidira aceitar um convite de Marlon, ardendo de
curiosidade sobre o que ele chamava surtos hétero. Para se proteger, usara o
carro e o nome da amiga solteira – também parceira dele de vez em quando – e
criara um laço novo em sua vida, do qual ninguém deveria ficar sabendo. Muito
menos um sujeito intrometido como aquele amigo, que no entanto a enternecia com
sua dedicação paternal. O que não impedia que, uma ou outra vez,
Um comentário:
História das boas. Li toda ela, adorei.
Beijo
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