quarta-feira

Uma história incompleta Final


20

Em sua sala, Cosme ruminava hipóteses fantasiosas em torno de uma história real. Ouvia um concerto para violino e celo, tão baixo que dificilmente alguém além dele seria capaz de ouvir. Um ouvido de tuberculoso, como dizia seu pai. Sorriu de leve, lembrando o velho de quem herdara o nome, e apenas um músculo da face esquerda se movia, quase imperceptível. Seu pai tinha sido um político atuante, de grande prestígio, responsável por uma mudança radical na câmara estadual e por um período brilhante na administração do Amazonas. Infelizmente, essa fase marcada pela lealdade e por uma justiça digna do nome, mas que durara bem pouco. Não lhe faltavam inimigos, gente insatisfeita, que precisava das sombras que ele dissipava com sua retidão; gente que precisava do contrabando, do tráfico de drogas e da prostituição para manter o poder econômico e o prestígio.
Pouco depois do assassinato do velho deputado, sua família precisou fugir às pressas, de madrugada, num barco em que levavam o necessário para a viagem e alguma roupa. Ficaram em Manaus a casa espaçosa construída pelo avô, as cabeças de gado e as criações, os empregados que nem ao menos conseguiram indenizar decentemente. Lembrava daquela noite como de um pesadelo. Tinha deixado pela metade um doutorado em ciências políticas e trazia consigo seus diplomas, um pouco de dinheiro achado no cofre e algumas jóias que acompanhavam a família há três gerações. Quase nada, levando-se em conta que vinham para o Rio de Janeiro sem saber ao certo a quem iriam recorrer. A mãe e a irmã pouco falavam desde a morte do pai, e a angústia delas lhe dava forças para enfrentar a situação.
Na agenda do pai, tinham encontrado dois endereços de conhecidos no Rio. Um deles, antigo colega de universidade, não morava mais no lugar anotado. O segundo era o Castro, filho de outro deputado do estado, que estudara e se formara no Rio. Deviam ao Castro o quarto de hotel em que se abrigaram no início de sua estada na cidade e as primeiras refeições sólidas daqueles dias. Também deviam a ele, embora em outro contexto, o casamento de sua irmã com um amigo do advogado, viúvo havia cinco anos. Castro não os apresentara com segundas intenções, tudo fora obra do acaso, e Cosme gostava de repensar aquela história, que lhe soava um pouco romanesca, além de ter dado uma última alegria a sua mãe, já muito doente.
Pensava na beleza um tanto melancólica daquele encontro entre a cabocla esguia e muito jovem, meio assustada com a cidade desconhecida, e o homem dezoito anos mais velho que ela, de ar um pouco triste e coração generoso, que se dedicara a Maria Rosa como a uma filha. Ele a reconduziu ao curso interrompido pela fuga de Manaus e ajudou a firmar sua carreira de juíza. Independente e desenvolta, a moça era agora dona da própria vida e objeto de uma paixão que deixava o irmão detetive um pouco apreensivo, porque conhecia bem demais a natureza humana e o ciúme do cunhado lhe parecia excessivo. Enfim, o jogo estava feito e cada um seguia seu rumo de um modo que deixaria o pai orgulhoso.


O relógio da sala ainda bate as horas, mas Pascal já não pula de susto a cada badalada: limita-se a levantar as orelhas e olhar com certo enfado aquela coisa que interrompe seus cochilos e o distrai da bolinha que perseguia. Líria está atarefada em sua sala, na empresa onde trabalha, às voltas com alguns casos complicados de férias atrasadas e reivindicações que é preciso analisar com cuidado. Tem pressa. Daqui a uma ou duas horas espera a chegada de Pôncio, que iria passar pela rua da empresa e tinha se oferecido para levar-lhe uns documentos esquecidos em casa pela manhã. Um bom amigo, sempre disposto a ajudar.
Abanou a cabeça, lembrando do mal-entendido do ano passado. Agora podia rir daquela bobagem e da chateação que lhe causara. Na verdade, nem lembrava mais, e por associação pensou na maldade que tinha feito com ele, tentando atrapalhar a reportagem sobre o estádio do Rio Comprido. Seu sorriso se alargou e ela imaginou se algum dia seria capaz de confessar aquilo. Mas que nada, ficava uma coisa pela outra, estavam quites, e agora eram de novo grandes amigos.
O livro de Pôncio tinha sido lançado na semana anterior, numa festa cheia de gente, um sucesso absoluto. Ainda mais que o mandato de Lauro Munhoz tinha sido cassado e ele respondia por seus crimes na justiça comum – uma grande vitória, num país onde os poderosos costumam escapar da punição por seus crimes. A mídia entronizara o jornalista como herói da pátria. Todo mundo queria entrevistá-lo, seu livro encabeçava a lista dos mais vendidos pela segunda semana e Larissa estava grávida. Pôncio não cabia em si de contentamento, e esse estado beatífico o tornava ainda mais amável que de costume.
Chegou à empresa lá pelas quatro e meia, quando Líria e Marlon tomavam o café de praxe na cantina. – Venha tomar um café com a gente, Pôncio, ela disse, levantando-se para beijá-lo e apresentando-o ao colega e seu amigo. Não notou a expressão do outro, mas estranhou que ele não tivesse aceitado o convite e logo que lhe entregou os papéis tivesse se despedido de um modo que lhe pareceu meio brusco. – Vai ver ele está cheio de trabalho, não esquenta, disse Marlon, terminando seu café. Trouxe o que você pediu, não trouxe? Então, mulher, o que você queria mais? Líria deu de ombros e os dois voltaram ao trabalho.
Pôncio no entanto entrou no carro incomodamente contrariado. Tinha reconhecido no colega de Líria o sujeito que afinal causara tanto mal-estar entre eles e quase dera fim ao casamento de Laio. Então era ele, ainda? Passou o resto da tarde perturbado com a ideia de que afinal estava certo. E tanto isso o incomodou que procurou por Cosme, a essa altura já envolvido em outro caso. Precisava ter certeza. Não aguentaria continuar convivendo com os amigos sabendo daquilo, ainda que fosse difícil de acreditar que – queria saber de tudo, fosse qual fosse o resultado. – Não é todo dia que se encontram amigos iguais a eles, explicava ao detetive. Quero saber toda a verdade, aconteça o que acontecer. – E pretende reeditar sua atuação do ano passado? – quis saber Cosme, meio preocupado com o resultado da investigação. Não prefere acreditar que tudo não passa de coincidência? Se ela fosse culpada do que você imagina, não acha que seria meio estúpido ter te apresentado ao cara?
Cosme, como sempre, tinha razão. Mas Pôncio tinha uma cabeça obstinada e, ainda que não pretendesse repetir o que tinha feito antes, queria tirar tudo a limpo. Assim, quinze dias depois ele recebia um relatório completo a respeito do belo rapaz com quem Líria, todos os dias úteis, repartia uma mesa da cantina. Assim ficou sabendo que Marlon dos Santos Macieira Lima frequentava algumas vezes por semana motéis como o Mon Bijoux em companhia de um parceiro – nem sempre o mesmo, mas quase sempre um dos três cujos nomes vinham listados abaixo. Havia ainda, mais raramente, uma parceira eventual, de nome Ana Rosa Araújo Alcino.
Agora Pôncio, que respirara aliviado com a notícia, tinha outro dilema – contar ou não contar à amiga o que tinha descoberto sobre seu amigo. Larissa tentou em vão convencê-lo de que chegava uma fofoca, e que duas talvez Líria não lhe perdoasse, mas era mais forte que ele, e achou um jeito de explicar à amiga quem era aquele sujeito tão simpático com quem ela tomava cafezinho todo dia.
Surpreso, viu Líria rir muito dele, confirmando alegremente que Marlon era gay, sim, assumidíssimo, e também um ótimo rapaz, colega exemplar, um cara leal e um papo maravilhoso. Meio desconcertado, sorriu amarelo e achou melhor encerrar o assunto, mas antes queria saber por que de vez em quando ele preferia a companhia de uma mulher. – Ah, é uma longa história, ela explicou. Ana é apaixonada por ele, acha que pode despertar o príncipe encantado que ele não sabe que é. Não há o que tire isso da cabeça dela. – Mas que bobagem, ele comentou. Essa moça está perdendo tempo, se iludindo atoa. – Pois é, comentou Líria, com um jeitinho coquete. Eu já disse isso a ela, mas – claro, claro, não se pode interferir nessas coisas, ele disse.
Despediram-se calorosamente, e mais tarde ele engrandecia o espírito delicado de Líria, capaz de compreender e manter a amizade com um cara de vida assim complicada. Larissa não disse nada e mudou de assunto.
Em casa, enquanto esperava a chegada do marido escovando de leve o pelo de Pascal, Líria revia a experiência de uma tarde em que decidira aceitar um convite de Marlon, ardendo de curiosidade sobre o que ele chamava surtos hétero. Para se proteger, usara o carro e o nome da amiga solteira – também parceira dele de vez em quando – e criara um laço novo em sua vida, do qual ninguém deveria ficar sabendo. Muito menos um sujeito intrometido como aquele amigo, que no entanto a enternecia com sua dedicação paternal. O que não impedia que, uma ou outra vez,

Um comentário:

césar disse...

História das boas. Li toda ela, adorei.

Beijo