Foto sem menção de autor
Em uma palestra proferida para
estudantes de cinema, Gilles Deleuze aponta nos personagens de Dostoiévski,
filmados por Akiro Kurosawa em O Idiota,
uma forma de agitação pela qual estão sempre vitimados pela urgência: “Tânia me
espera, é preciso que eu vá”, ou “É um incêndio, é preciso que eu vá” – mas
qualquer incidente ou encontro casual com alguém os leva a esquecer a pressa e
o chamado. Isso acontece porque, ao mesmo tempo em que são presas dessa
urgência, os personagens do autor russo “sabem que há uma questão ainda mais
urgente, embora não saibam qual”. Essa noção de que há um problema mais
profundo do que aquele da circunstância do momento paralisa os personagens e os
desperta para alguma coisa que, embora não definida, é ainda mais urgente. O
próprio Kurosawa tem em seus filmes essa marca dostoievskiana de criar
personagens inquietos, que se metem em situações incríveis, mas nunca perdem o
sentido dessa “coisa mais urgente” que está além de tudo e é a mais importante
de todas.
Isso configura uma atitude basicamente
filosófica diante da vida. Vamos dizer que os fatos do dia-a-dia são matéria de
informação, e essa “coisa mais urgente” seja matéria de contra-informação
efetiva, para usar as palavras de Deleuze, porque resiste aos fatos cotidianos
e corriqueiros, vai mais além da opinião e da ação imediata.
A sociedade em seus mecanismos de
controle não está além do cotidiano; muito ao contrário, dobra-se sobre o
cotidiano para mantê-lo dentro de suas normas. O controle se exerce com
objetivos pragmáticos, para conseguir resultados concretos. Por isso Deleuze
define a arte como ato de resistência à sociedade de controle. Mas não é só
isso. Ele se reporta a um conceito de André Malraux: a arte é a única coisa que
resiste à morte. O exemplo que ele invoca é bem significativo: uma estatueta de
3 mil anos antes de Cristo ainda causa prazer por sua beleza, e no entanto
passaram-se milênios de civilizações e culturas diferentes.
Considerando que a morte é um controle da
vida, no sentido de uma limitação imposta, pode-se estender esse conceito até
mesmo a gestos e símbolos de resistência que, se não são necessariamente obras
ditas de arte, mantêm com elas uma afinidade de significação nos modos como se
originam e como afetam a sensibilidade humana. Mas existe sempre, em toda obra
de arte, um traço de resistência, de avanço em relação a sua época e de
perenidade, no sentido em que ela vale para outro tempo muito além, talvez para
sempre, o que é muito para se dizer. Por isso Paul Klee, o pintor, dizia que
toda obra de arte faz apelo a um povo que ainda não existe.
2 comentários:
Gosto de personagens inquietas. Talvez por isso sempre gostasse da densidade narrativa de Dostoievski e de Kurosawa, embora o primeiro seja mais "pesado".
Grande texto, Dade!
Beijo :)
Excelente texto, Dade. E a arte, sim, o Klee estava absolutamente certo: só ela resiste à morte.
Beijos,
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