Bloomingville Autumn. 2010. Sem menção de autor.
Acordou
prisioneira daquele quarto de paredes azuis, quadros de molduras meio douradas
e um tapete velho e cinzento. “Está ruço”, pensou. Olhou em volta e tornou a
deitar. Alguma força oculta a impedia de pular da cama num susto para não
perder a hora, na segunda-feira de sol tão luminoso que as cortinas pareciam
prestes a pegar fogo. Mas o relógio, aquele mesmo seu conhecido de muitos anos,
marcava sete horas, hora que ardia, marcada a ferro e fogo em suas manhãs.
Sentou na cama e girou o pescoço para um lado e para o outro. Sentada, as
coisas adquiriam certa consistência, e mesmo assim era como se pertencesse a
outra realidade. Pôs os pés para fora da cama e procurou os chinelinhos
felpudos, que a mãe insistia em deixar no banheiro para só usar depois do banho;
Teresa achava que tudo existia para ser fruído, usado, sugado até o fim.
A lembrança
da mãe a levou a uma estância interior, uma pequena caldeira onde conviviam
sonhos e memórias. Entediava-se de encontrar todo dia as mesmas coisas a sua
volta, a sala com os dois abajures verdes e aquelas cadeiras que lhe davam a
impressão de estar num museu da Primeira República. Implicava mais seriamente
com as cortinas rendadas de um tom creme-dúvida (seriam brancas amareladas ou
cremes de verdade?). Sabia que não tinha nada que se meter no gosto da mãe, afinal
a dona da casa era ela. Entrou na cozinha atrás de um copo de suco, que sempre
tomava em jejum, e o sempre vibrou em
sua cabeça como uma lâmina.
Foi uma coisa súbita. Sempre
lhe pareceu uma enormidade. Voltou ao quarto sem o suco de laranja, e logo à
porta reparou na bonequinha de metal meio tocado de amarelo, pendurada desde
toda a eternidade na chave daquela porta cansada de ser branca. Notava de
repente, e agudamente demais, como as coisas são profanadas pelo tempo. Isso
devia querer dizer alguma coisa que era preciso levar em conta. Tentou resistir
à pequena tempestade que se formava dentro dela, mas o esforço de realinhamento
não surtiu efeito.
Seu barco fazia água.
Urgia aliviar o peso da carga a bordo. A bonequinha de metal torneado voou
janela afora com um pequeno ruído que soou a seus ouvidos como um acorde
promissor. O quadrinho de figura desbotada, moldura rococó descascada nos
dourados, seguiu a bonequinha com um pouco mais de estardalhaço, porque foi
aterrissar na área de serviço de um vizinho meio azedo que logo se fez ouvir.
Mas o alívio de tirar de cima da alma o peso do dia-a-dia era tão instigante,
que Teresa foi pegar uma sacola funda e espaçosa, dentro da qual couberam todas
as quinquilharias e badulaques varridos por seus olhos naquela manhã. Entre
elas o relógio das sete horas, as caixinhas desconjuntadas da coleção sobre a
estante do corredor e umas flores esquálidas de pano que pendiam desde sempre
do aparador da sala. O tapete ruço não coube na sacola, e ela deu de ombros,
pensando que amanhã é outro dia. Levou tudo para a lixeira do corredor e voltou
para o apartamento. Tinha perdido a hora do curso, um preço bem baixo a pagar
pela alegria de entrar numa casa que parecia tão maior e mais clara.
Sentou no chão da
cozinha com uma manga e uma faca. Nem lembrou mais da mãe, que chegaria à
noitinha. Já sentia o gosto da manhã seguinte, quando pretendia mudar alguns
móveis de lugar.
10 comentários:
Todos nós passamos por momentos assim, em que é preciso mudar, sair do mesmo lugar. Um conto perspicaz.
Beijo, querida.
Acordo que nem Teresa. Contudo, não me sento que é pra não deixar o dia começar. Talvez eu devesse ir embora, pra nunca mais. Depressão é um monstro feio. Sorte de Teresa não ter medo de monstros. Eu tenho. Bj Dade, brilhante texto, como sempre!
Mudar... todos precisamos desse momento decisivo!
Dade, essa Teresa é um pouco (ou muito) desta aqui. Sacolas de quinquilharias porta afora representam alma lavada. Chinelinho felpudo ao lado da cama ajuda a colocar os pés pra fora. A vida merece mesmo ser sugada!
Bjos
Mas que belo conto! Teresa e suas cortinas em tom creme-dúvida.
Seja bem-vinda ao rejaneando, Dade.
Vindo de você, Ana, isso é um baita elogio.
Bjs
Chorik, depressão é mesmo um monstro muito feio. Mas um dia ela vai embora, ainda mais se você lutar contra.
Beijo e grata pelas palavras generosas.
Pois é, mfc, eu que o diga. Vivo querendo mudar as coisas aqui em casa.
Beijo beijo.
Se merece, Maria Teresa! Sou muito Teresa, também.
Beijo grande.
Rejane, é bom demais ver você aqui. Um grande beijo.
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