quinta-feira

Angeli


Não se saberia por quê. A morte desceu sobre a casa dos Angeli sem qualquer motivo aparente. Era cedo, acima de tudo. Cedo para o que se costuma considerar a hora de morrer.  Dezesseis anos, saúde aparentemente perfeita, uma boa forma física.  Um rapaz sempre de bom humor, inteligente, promissor em tantos sentidos e herdeiro de uma fortuna razoável, nada de assombrar, mas bem agradável. E assim, de repente. Da noite para o dia, sem qualquer aviso, sem sintomas, sem susto nenhum, a não ser o que veio depois, quando já era tarde e o susto não tinha mais qualquer utilidade. A irmã mais velha estranhou a demora dele e foi até o quarto.
Depois disso, tudo mudou. As coisas inexplicáveis – inexplicáveis do ponto de vista de nossa limitação, porque as explicáveis também são inexplicáveis a seu modo, mas cabem em nosso repertório – essas coisas inesperadas que acontecem de vez em quando causam uma impressão muito mais forte, funda e duradoura do que as esperáveis, previsíveis. Ficar inconsolável em geral significa não ter conseguido achar uma explicação para um acontecimento, mesmo que ele tenha de algum modo se anunciado. A família ficou pois inconsolável: o pai, a mãe e Dora, a irmã mais velha. A casa mergulhou na penumbra, já não se abriam mais as persianas e as cortinas, e à noite ninguém se animava a acender tantas luzes quantas seriam necessárias para iluminar os aposentos, que ficavam sempre à meia-luz. A mãe já não bordava, não ouvia ópera nem saía mais com as amigas para fazer compras e jogar canastra e bridge, uma verdadeira tradição preservada há mais de dez anos. Não dava ordens às empregadas, não se interessava pela lista do mercado, não ligava para ninguém. O pai andava como um sonâmbulo pela casa, olhando longe pela janela, esquecido de seus negócios e dos amigos do clube. Quem os procurasse em casa invariavelmente ficaria dez ou quinze minutos tentando distrair ou consolar os três e desistiria, diante do mutismo e dos olhos vazios com que era recebido. Nem ao menos se uniam no luto do menino. Ficavam, cada um em seu canto, remoendo, revivendo cada instante, cada lembrança, chorando e olhando os objetos dele, os retratos no aparador da sala e na lareira. A mãe chegou a ficar três dias trancada no quarto dele, sem alimento, sem banho, sem dormir senão pequenos sonos entrecortados de visões e sustos.
Passou a missa de sétimo dia, igreja cheia, os três no primeiro banco chorando em silêncio mas sem parar. Passou a de trigésimo dia, a de três meses, a de seis meses. Passou a missa de um ano. A vida da casa não voltou ao normal. O pai perdia dinheiro em negócios fechados sem sua interferência, incapaz de tomar decisões ou de se concentrar em alguma coisa que não fosse a dor surda e opressora que carregava para onde fosse. A mãe se tornara para sempre melancólica, doentia, suspirosa, chorando à toa e sem sono à noite, sempre de olhos inchados e distantes.
Dora tinha um namorado, um rapaz considerado uma verdadeira exceção no mundo de hoje, segundo sua tia Lola, irmã do pai: pessoa séria, estudioso, educadíssimo, prestativo e discreto. Trabalhava com um tio numa pequena empresa de editoração e era um tradutor competente. Ganhava o suficiente para sustentar uma pequena família, mas não ousara ainda pedi-la em casamento porque, antes da morte do rapaz, esperava que o relacionamento deles se tornasse mais seguro, mais estável, e que Dora desse alguma demonstração inequívoca de querer casar com ele. Sabia que os Angeli eram pessoas conservadoras, exigentes, e não queria se expor sem essa certeza. Mas queria muito bem a Dora, tanto que a insegurança o fazia sofrer. Depois da morte do irmão mais novo da moça, ele achou que não seria oportuno falar em casamento durante algum tempo. Tinha medo de ser inconveniente, de magoar alguém naquela família de sofredores crônicos, e foi adiando o momento, embora a intenção se mantivesse sempre a mesma.
Por seu lado, ela passara de um estado de suave enternecimento que bem podia se transformar em amor a outro de acomodação, como se ele fosse um parente, um amigo confortável e cômodo, de ombro largo e peito quente onde podia chorar e cultivar sua dor. O namorado, Waltinho para os íntimos, sentia com certa angústia a transformação, mas não reclamava, e tratava de consolar e acarinhar a pobre da namorada. Sentia falta das demonstrações de antes, dos beijos na varanda, que rarearam muito e pareciam em extinção. Em vez de namorar como antes, ir ao cinema ou almoçar fora com ele, Dora ficava inerte, os olhos longe e sempre indisposta para sair ou conversar de algum assunto menos que respeitoso. Tinha perdido a vivacidade de antes, não contava mais histórias engraçadas de suas colegas, deixara de ir à faculdade e agora dera para ir à igreja todos os dias às sete da manhã para assistir à missa. Waltinho não tinha nada contra a dor, mas tinha muito contra a Igreja e a missa – Dora desconfiava que ele fosse maçom – e não gostava da idéia de vê-la interromper o curso de sociologia. E uma tarde, depois de um chá meio aguado e morno que a empregada servira na sala, Dora lhe comunicou a decisão de entrar para o convento.
Waltinho se sentiu escorregar da cadeira e teve que se empertigar para recuperar o equilíbrio. A princípio não conseguiu falar de modo inteligível, mas depois começou a desfiar argumentos aflitos, desencontradamente, atropelando as frases e gaguejando um pouco, o que lhe acontecia toda vez que se sentia muito embaraçado ou tenso.
— Mas afinal, disse ele, em que século você pensa que nós estamos? Quase no ano dois mil! Quase no terceiro milênio, e você quer — nem terminou a frase, engasgado, e ficou olhando para ela como se estivesse ofendido.
Ela deixou a xícara sobre a mesinha de centro e levantou as sobrancelhas, olhando o tapete.
— Você também não é nenhum garotão surfista nem fera em informática, não tem grupo de rock nem entende muito de globalização.
  E daí?
— Você também não é um rapaz moderno, não pode estranhar tanto assim minha decisão. E além disso você é bastante sensível para entender. Não acredito mais na felicidade deste mundo.
Ameaçava chorar. Waltinho recuperou um pouco o sangue-frio e tentou mudar o tom da conversa.
— Olha, Dora, quem morreu foi seu irmão. Eu sei que foi duro, uma coisa cruel demais para vocês, e que nunca mais a vida pode ter o mesmo significado de antes. Foi uma perda irreparável.
— Ajudei a criar meu irmão, ela ciciou já de lenço nos olhos. Eram oito anos de diferença. Vi meu irmão crescer, tinha tanto orgulho dele, tanta esperança.
— Sei, eu sei. Mas a sua vida tem que continuar. Você também é muito moça, merece viver, ser feliz. Não quer dizer que vá esquecer dele, é claro, mas não precisa deixar de viver por causa dele. Isso não o traz de volta. E depois, já faz tanto tempo.

2 comentários:

Aloísio disse...

Uma história incrivel e perfeita.

Beijo

Tania regina Contreiras disse...


Ah, como essa história é realidade na vida de tantos! Perfeita.

Beijos,