quarta-feira

Silêncio alternativo



Quem devia ter ficado surdo no lugar de Beethoven era um escritor. Digamos Borges, por exemplo. Borges não podia ter ficado cego, o que deve ter atrapalhado a atividade dele, na dependência de alguém que pudesse escrever o que ele criava.
Mas a gente não escolhe o sentido que vai ficar mais fraco ou o que vai se perder.

No meio da zoeira da cidade, quando o trânsito agoniza embaixo da janela ou um martelo e uma serra dão conta da obra ao lado, às vezes penso em como seria bom poder desligar a audição, deixar de ouvir e mergulhar num silêncio total.

A gente ouve camadas de sons. Um ronronar distante de motores que nem se sabe onde estão um barulhinho gostoso de folhas que se roçam com o vento, vozes que espetam o silêncio de repente. Freadas, buzinas, estouros, foguetes inexplicados. Ruídos que vêm do alto, do vizinho que arrastou um móvel ou pisou forte com o salto contra a madeira do assoalho, coisas que caem, louças que se quebram, águas que correm. Até tiros, às vezes, para lembrar onde estamos. E música. A música que pusemos pra tocar, que nos dá prazer; a música que o alto-falante toca lá fora, de um carro qualquer; a que alguém por perto resolveu ouvir bem alto, porque está no banheiro e o som no quarto.

Aí imagino como seria ir deixando de ouvir cada camada dessas, começando pela banda que grita, apagando o som do carro, que parece arranhararece ndo o som que arranha ndo de ouvir cada camada dessas, começando pela m uma depend todos os sentidos, e o próprio Tom Jobim que nos embalava. E logo somem os ruídos intempestivos, os gritos inexplicados, e restam as folhas farfalhando, o ronrom distante; mas mesmo esses vão se diluindo numa espécie de vazio, que cresce e se espalha. Não ouço mais nada.

Aproveitando essa paz em que nem o silêncio faz seu habitual zunido manso, fecho também os olhos e deixo as idéias chegarem à tona. A princípio um pouco assustadas como baratinhas flagradas pela luz, elas hesitam. Mas pouco a pouco vão emergindo de seu escurinho básico e se mostram. É preciso agir rápido, antes que o feitiço acabe, a mágica se desmanche e cada coisa volte a emitir seus ruídos.

De repente, uma dúvida traz um susto nas asas: e se for pra valer? Se nunca mais Tom Jobim, nem Chet Baker, nem Turíbio? Não saber se alguém abriu a porta, não ouvir o chamado do telefone, não saber que o portão do estacionamento abriu às duas da manhã? Não mais a voz do marido, dos filhos, das crianças que dão um fresquinho na alma?

Alívio: destamparam-se as orelhas. A camada das folhas subiu de tom: venta muito, a cortina voou lá pra fora e um trovão sacode tudo, aleluia. Mas como seria bom, de vez em quando, esse oásis de silêncio total, que nenhum protetor de ouvidos pode dar...

4 comentários:

Enylton disse...

Muito original, teu texto, Dade!

Beijos nossos

Ivan disse...

Gostei demais, Dade.

Beijos do Ivan

Nilson Barcelli disse...

O silêncio é tentador.
Teríamos paz, mas sem termos uma noção da realidade.
Mas é bem melhor ouvir, ainda que de vez em quando sejamos agredidos pela barulheira...
Magnífica reflexão. Gostei.
Dade, minha querida amiga, desejo-te um NATAL MUITO FELIZ e um PRÓSPERO ANO NOVO.
BOAS FESTAS
para ti e para toda a tua família.
Beijos.

Tania regina Contreiras disse...


Difícil é um silêncio sem barulho, né? Um dia eu disse; se tiver que perder algum dos sentidos, que seja a audição, assim não escuto a barulheira da cidade! Mas não...Os barulhos ainda me mantêm na terra. Já sou volátil. Bela escrita a sua. Cada texto com uma originalidade tão íntima, tão própria...

Beijos,