Foto sem menção de autor
Tive até duas carteiras de identidade, a
primeira do IFP, que sumiu, e a segunda (provisória) do Detran. Várias vezes
pedi outra, mas o processo caía “em exigência”; os preclaros funcionários
daquela repartição me explicavam que minhas digitais apresentavam-se pouco
claras, por conta de traços que as interrompiam, tornando-as inidentificáveis e
portanto inaceitáveis para o datiloscopista. Nada contra a classe. Mas parece
que são preparados somente para dizer sim ou não às nossas digitais e ponto
final. Nunca lhes falaram sobre o mundo além das pontas dos dedos.
Tentei ir mais fundo na questão,
argumentando que existem outros modos de identificar alguém, o DNA sendo o mais
conhecido no mundo civilizado. Depois de três tentativas baldadas, convenci-me
de que foi Kafka o fundador do Detran, porque toda vez que eu insistia em falar
no assunto meus atendentes faziam cara de paisagem. Quem ainda se dava ao
trabalho de responder alguma coisa, dizia vagamente que não, nunca tinha ouvido
falar sobre esses métodos. E um deles chegou a argumentar, com um misto de
espanto e complacência penalizada: “DNA só serve pra confirmar a paternidade,
só.” Humildemente argumentei que até múmias da Antiguidade andavam sendo
identificadas a partir de restos de antepassados, e que meus antepassados deviam
estar em condições bem melhores. Mas o rapaz deve ter achado a proposta
indecente; sacudiu a cabeça, escandalizado, e encerrou o assunto com um “aqui
não fazemos esse tipo de coisa”.
Devem ter recebido instruções nesse
sentido, concluí, recusando-me a acreditar na hipótese de incompetência ou pura
e simples ignorância. Deve haver uma razão transcendental para que eles se
apliquem com tal pertinácia a impedir que uma pessoa obviamente real, ali
presente em carne, osso, roupa, voz e acessórios, fique privada da carteira
plastificada que lhe garante um lugar no rol dos cidadãos deste país. Mesmo com
aquela cara de idiota no retrato, não é justo que deva me conformar em ser para
o resto da vida uma pária da sociedade.
Pensei em contratar um advogado, trocar
meu voto por uma carteira de identidade vitalícia ou analisar o grau de
corruptibilidade dos funcionários kafkodetraniano. Mas felizmente não foi preciso: encontrei um menos intransigente, que achou minhas digitais aceitáveis e me deu uma das maiores alegrias cívicas de que me recordo.
14 comentários:
Dade,
Também há flores em pleno deserto. :)
Beijo :)
Olá!
É um grande prazer conhecer seu blog e poder ler o que escreves.
Acredito que quando escrevemos com prazer conquistamos amigos e fiéis amantes das palavras. Sabemos o quanto é difícil levar a nossa voz, as nossas angustias os nossos sonhos às pessoas. Mas o mais importante é saber que você e eu gostamos daquilo que fazemos.E acreditamos que o mundo pode se tornar bem melhor através de nossos escritos.
Grande abraço
Se cuida
Que coisa, não?
Beijos,
Então quase estavas condenada a não existir?!
Mas afinal... ressuscitaram-te!!
Felizmente, AC, felizmente.
Beijo.
Fiquei contente com seu comentário, VIda, e espero que possamos trocar impressões muitas vezes.
Beijo.
Tânia, foi o ó.
Beijo beijo
Sim querido amigo, fui ressuscitada por um datiloscopista de boa cabeça.
Beijinho.
Nada como saber que ainda há quem conheça o que há além da ponta dos dedos, Dade! Ufa!
Beijos a essa cidadã querida devidamente identificada.
Já lhe disse que gosto também muito das suas prosas? Um abraço
Nossa, Kafka fundador do Detran? Muito boa essa, Dade! Vou cometer uma gafe agora, mas é bom saber que até pessoas como você sofrem com crises de identidade.
Em São Paulo, capital, só sei que o fundador do Detran deve ser o "santo" protetor dos despachantes.
E, off topic, comecei a ler O futuro de uma ilusão, por tua culpa.
Bj
Pois é, Maria Teresa, ainda bem que identificada, senão...
Beijo beijo.
Amélia, fico toda prosa quando você diz essas coisas :)
Beijos!
Vai fundo, amigo Chorik, o livro merece.
Beijo pra você.
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