A paz do lugar para onde mudara induzia a
refletir. Nunca se cansava de acompanhar os voos dos pássaros e a dança dos
galhos e folhas, que lhe pareciam meio mágicos. Na verdade era uma atração
desproporcional à singeleza dos acontecimentos. Mas o que mais atiçava sua
imaginação era mesmo a vizinhança, famílias que pareciam ter uma vida
rotineira, mas de vez em quando davam indícios de que, por trás de tanto
sossego, talvez os acontecimentos não fossem tão pacatos quanto o dia-a-dia do
lugar.
O filho do senhor do terceiro andar do pequeno
prédio vizinho, por exemplo, aparecia de vez em quando, sempre muito tarde da
noite, acompanhado de uma mulher muito esbelta, cuja silhueta dava impressão de
ser bem mais jovem que ele. Alice, sua própria mulher, classificou
laconicamente a moça de “perua engomada”. Curiosamente, o barbudo rapaz e sua
acompanhante não entravam no apartamento do pai dele, e sim no apartamento de baixo,
ainda vago. O casal entrava discretamente, com muito cuidado para não se deixar
ver, e saía horas mais tarde, às vezes pouco antes do amanhecer.
Com sua insônia habitual e uma varanda de vista
estratégica, ele acompanhava os movimentos dos dois sem ser visto. Deduziu que
na certa o filho do vizinho estava tendo um caso com a moça e não desejava
aproximá-la do velho.
— Só não entendo – comentou certa vez com Alice
– é por que não vão a um hotel do Rio, onde moram, em vez de vir para tão
longe.
Ela fez sua expressão mais marota.
— Ora, ora, você está mesmo ficando fora de
forma – disse. Não te passa pela cabeça que aqui é o lugar onde mora o pai
dele, e por isso ele tem um álibi perfeito para ficar indo e vindo a esse
lugar? Ninguém pode estranhar, nem mesmo a mulher dele.
Olhou-a com muda admiração. E enquanto a
olhava, lembrou muito nitidamente dos anos em que ela visitara a mãe em Arraial
do Cabo com admirável assiduidade, chegando às vezes a passar dias em sua
companhia, enquanto ele ralava na empresa de transportes que havia herdado do
pai. Uma pergunta chegou até seus lábios, mas achou melhor não a articular, e
preferiu mudar de assunto.
10 comentários:
Fez bem em mudar de assunto. Salvo pela tangente...
Beijo, JL
Quantas vezes o silêncio nos salva?
Excelente!
Beijos
Mirze
Olha só, todo mundo com telhado de vidro... assim é a vida. A vida como ela é, como diria o Nelson. Mais um ótimo texto, Dade. Um grande abraço.
Pois é, JL querido.
Abraço.
Há prudências que é preciso ter, não é mesmo Mirze?
Beijo.
Telhado de vidro é uma denominação bem certeira,não é?
Gracias, Marcelo.
Beijo.
ainda assim, há silêncios que perturbam mais que mil palavras :)
beijinho, dade!
Hehehe, muito bom Dade. Haverá algum embasamento da tática em fatos reais? Hein, hein? rs
Tem razão, Jorge, mas ainda assim às vezes os guardamos,com medo de quebrá-los e sofrer mais.
Beijo.
Ah, menino, deixa de ser maldoso :)
Beijo Chorik.
Postar um comentário