sexta-feira

Palavras do mar



Estranha relação aquela com o mar. Se ao menos fosse coisa do astral, se tivesse nascido em Peixes, Aquário, Câncer... Mas que nada, era de fogo, fogo duplo: Leão com ascendente em Sagitário – embora um Leão-quase-Virgem, que lhe rendera uns vestígios de obsessividade e a fizera fã de histórias de detetive. Não era um motivo de origem – além das origens aquáticas de todos nós, é claro – mas um traço debussiano aprendido muito cedo nos discos que o pai ouvia a toda hora. E mais: ainda que nascida no Rio, sempre havia morado na Tijuca, longe do mar. Não conhecia senão de ouvir falar a aporrinhação dos metais oxidados, da umidade, do cheiro de maresia.
Aprendeu o mar em contatos encantados nas praias da infância, e as recomendações dos adultos a maravilhavam: então era muito perigoso, e perigoso passou a ser sinônimo de bonito, inefável, de não ter muita certeza de nada e olhar com uma desconfiança arrebatadora todas as coisas desconhecidas. Com o mar aprendeu o mistério das palavras – vá alguém confiar nas palavras, mutantes como o mar. Aprendeu com o mar a ver as coisas pela luz que transforma tudo, das cores ao sentido. Entrar no mar a deixou "séria de ventura e aventura", como diz Clarice, e lhe ensinou que se pode experimentar uma ausência de limites sem se diluir no nada, ficando criança para sempre.
Nunca mais deixaria de ser criança, mesmo quando a maturidade lhe ensinasse a dura lição das impossibilidades. Aprendeu a vida embalada pela marola da calmaria, espancada pelo caixote inesperado, lutando contra a corrente e furando a onda verde para sair meio torta do outro lado, mais forte e mais humilde. Mergulhou na vida para confirmar o que já previa: para a vida como para o mar somos pouco mais que uma bolinha de pinball.
A diferença é que a bolinha vai e vem sem dizer nada e, tanto quanto se sabe, sem se alterar em sua natureza de bolinha. Mas gente às vezes não consegue ficar à tona e pode mesmo escolher não ficar.
Deve ter acreditado que entrando no mar daquele jeito voltaria ao perigo inefável, ao desconhecido arrebatador. Deve ter ido em busca, quando não havia mais nada para buscar em terra firme.
Tinha mesmo fortes motivos para preferir o mar.

12 comentários:

Amélia disse...

Amiga: gostei muito deste texto, mas ficou-me uma pequena dúvida: penso que é de sua autoria, mas como a foto que o acompanha é assinada por outra pessoa... Pode elucidar-me?para o meu -mail ainda hoje? É que amanhã parto em viagem...Coloquei-a na pasta onde guardo estas coisas como sendo esmo sua...

dade amorim disse...

Amélia querida, o texto é meu, mas a foto é da Mariana.
Obrigada pelo carinho
Beijos pra você.

césar disse...

Perfeito e belíssimo, querida Dade.

Beijo

Anônimo disse...

Dade..... prefiro o mar tbm... e neste texto tão belo e dúbio...tenho vontade de entrar no mar e de lá nunca mais sair. Ir andano, tirar os pés do chão e me deixar.

Jorge Pimenta disse...

"Com o mar aprendeu o mistério das palavras – vá alguém confiar nas palavras, mutantes como o mar."

querida amiga,
quem isto sabe, não mais morre ignorante.
perfeito!
beijinho!

Adriana Riess Karnal disse...

o mar é sempre assunto para literatura, ah...

Marcelo Pirajá Sguassábia disse...

Belo texto, vale um mar de elogios. Gostei da referência a La Mer, de Debussy - obra encantadora. Um grande abraço, Dade.

dade amorim disse...

Você sempre muito generoso, César.
Beijo.

dade amorim disse...

Walkiria, tenho a impressão de que, em algum momento, todos temos um desejo desses.
Obrigada mesmo.
Beijo pra você.

dade amorim disse...

Saber tudo não seria o ideal, Jorge. Melhor deixar uma margem em branco.

Beijo e obrigada pela visita.

dade amorim disse...

Pois é, Adriana. Deve ser a mutação constante, esse mistério que não nos deixa nunca e que é nosso também.

Um grande beijo pra você.

dade amorim disse...

Obrigada, Marcelo, é sempre uma alegria ver você por aqui.
Beijo.