Lembrava Búzios de
outro tempo, do tempo com ele. Daquele ponto em que só se via o mar e o céu. O
mar e seus rochedos coroados de espuma e a imensa placidez ondulando de leve.
No toca-fitas música renascentista e o vento. O vento era um clima, dava vida à
música, levava e trazia, falava entre os cabelos dela. Lembrava sempre da
paixão daquele tempo. Da irreverência, da corrosão e do lamento, do langor e do
jogo de provocações a que a ansiedade obrigava e o prazer movimentava. Das
tardes em que o vento açulava ao sol, conspirava e sustentava os dois,
recriados no jipe de capota arriada, como jovens deuses pagãos.
Lembrava o reencontro
em Búzios, logo no início, quando ele, já um escritor de êxito, chamara os
amigos para uns dias na praia, comemorando seu terceiro romance, o mais famoso
de todos. Quando parecia que tudo estava pronto, que a vida seria para sempre a
visão daquele mar sem fim, o caminhar entre amarantas e buganvílias, quando ele
também parecia haver atingido alguma estabilidade, e lhe mostrava gavetas e
prateleiras de originais, trabalhos começados, pesquisas, pastas coloridas
amontoadas nas estantes e programas de lançamento, e ela respirava com mais
confiança e se rejubilava de sua euforia.
Pensou então no brilho
avermelhado de Marte naquelas noites, em como parecia quase escorrer sobre suas
cabeças. Ainda não conheciam a guerra em que se envolveriam. No horizonte, a
lua atirava ao mar suas escamas e alagava o mundo com o misterioso desvario de
uma luz quase sufocante. Reviu o pequeno terraço de mesas brancas, as duas
taças esguias que comemoravam, ele sussurrava, o coração da festa, os dois a
sós, donos de toda a beleza da terra e meio altos por causa da bebida gelada e
dourada, o riso silencioso e o beijo no qual haviam se perdido noite afora...
Na varanda da pousada, o café da manhã, rindo juntos do grupo que tinham
deixado para fugir sem avisar a ninguém. Escalada pela encosta até a Prainha,
mergulhos fortuitos na tarde morna, idílios no banquinho de madeira carcomida
olhando os barcos no ancoradouro dos Ossos.
E no entanto não
ficaria com ele em
Búzios. Ainda não se concederia viver seu sonho. Despedira-se
como se representasse um papel para disfarçar o próprio desconcerto, tentando
não ver o espanto com que a olhava, mudo. Porque na verdade doía, doía tanto,
tanto, e tinham feito tantos projetos para outros dias, tantos outros dias que
ela transformava em projetos vagos para algum futuro incerto. Entrou no carro e
logo se obrigou a virar o rosto para não ver os olhos dele que a interrogavam
ao vento. E por pouco não batia na traseira de um caminhão enguiçado na beira
da estrada, logo na saída da cidade. Tão toldados de lágrimas estavam seus
olhos.
De literatura
Já
dizia Paul Eluard que poeta é mais quem inspira que quem está inspirado. Disso
se trata, porque a poesia é uma visão do universo e uma maneira de descobri-lo
com olhos de menino. É beleza estética que nos penetra, sim. Porém é também uma
ética, pela qual os rostos das pessoas não são somente olhos, nariz e boca. São
mapas de geografias interiores que revelam plenitudes, abismos e histórias. A
poesia é a eternidade. É um estalido do silêncio.
Antonio Jr.,
em entrevista a Vera Rabêlo.
11 comentários:
Mas deixa eu te falar, agente hoje ta abordando um assunto diferente,168 Crianças foram MORTAS á 1 hora atrás, aqui no Brasil. passa lá http://amandabaracho.blogspot.com/
Como eu sofro a dor dos amores adiados!
ás vezes é tão difícil se entregar à felicidade. a gente se esquece que amor não tem prazo de validade.
primoroso seu conto, dade.
beijocas
Eu gosto de ler o que você escreve, mesmo quando não deixo nenhum comentário. Essa é uma história que acontece tanto, mas ninguém liga muito, como se fosse natural não ficar com quem se ama por qualquer motivo.
Mil beijocas da Kelly.
Muitas vezes falta coragem para fazer o que deve ser feito, não é? Coragem de brecar a poucos centímetros do caminhão, descer e retornar...
Beijo carinhoso pra você.
Barbaridades acontecem todos os dias, como essas mortes que não se sabe como explicar – na verdade, nenhuma explicação justificaria uma coisa assim. Triste demais, Amanda.
Beijos.
Amigo Chorik, os amores adiados fazem sofrer e, se pensarmos bem, às vezes são pura perda de tempo.
Solidarizo-me com sua dor.
Beijo.
Loba, é isso mesmo: a gente esquece como a vida é curta e que o amor acaba um dia.
Beijo.
Tem razão, Kelly, as pessoas não ligam muito para esses adiamentos que às vezes acabam com uma história que podia ser só de felicidade.
Beijo.
Pois é, querida Maria Teresa. Falta coragem para assumir uma vida nova.
Beijo beijo.
... E você é poeta e toda poesia!
Como gosto de vir aqui.
Beijo e feliz dia das mães!
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