Palhaços. Tela de Georges H. Rouault.
A imagem clássica do
palhaço com uma lágrima escorrendo pelo rosto sempre mexeu muito comigo. Lembro
que, muito pequena ainda (lá se vão décadas), ficava contemplando aquela
expressão ambígua e me confundia toda. As pessoas diziam que o palhaço era
engraçado, que fazia rir, existia para fazer rir. No circo isso se confirmava,
o palhaço era mesmo muito engraçado, trapalhão, tropeçando à toa, pregando
peças nos outros. Mas então, por que a lágrima?
Ninguém precisa explicar a
uma criança o que significa chorar. Quando se chora, alguma coisa vai mal. Mais
tarde a gente percebe que também se chora de alegria, mas não era esse o caso
do palhaço. Ele continuava portanto um enigma vivo, dançando e pulando, fazendo
macaquices e dando cambalhotas, embora sempre houvesse uma lágrima preste a
escorrer de seu olho pintado.
Antes de me tornar capaz de
abstrações, ouvi o Vesti la
Giubba, de Os Palhaços, a ópera de Leoncavallo, e
senti na música o quanto aquela imagem inspirava muito mais tristeza do que
riso. Meu pai então me contou a história de Canio, traído pela mulher que amava
e sofrendo sua perda, mas obrigado a ser alegre porque o público lhe pagava
para o fazer rir.
Durante todos esses anos,
fui percebendo cada vez melhor, cada vez com mais sutileza, o quanto cada um de
nós tem de palhaço, individual e coletivamente. Desde o catador de papel até o
dignitário supremo de cada nação. Não vai nisso qualquer intenção pejorativa,
que pertenceria a outro departamento. Trata-se da constatação pura e simples de
que nenhum de nós consegue realizar nada se não trabalhar em si essa habilidade
de palhaço, ou seja, a capacidade de se mostrar disposto, apto e até divertido
diante de todos, ainda que esteja desconfortável com a função que o sustenta, a
depressão faça crescer nele o incessante desejo de estar sozinho ou alguma
perda ou culpa tenha cavado em seu íntimo uma nascente de tristeza que não
estanca.
A arte do palhaço se
aperfeiçoou a tal ponto entre os homens de todos os quadrantes, culturas,
línguas e religiões, que aprendemos a construir o grandioso espetáculo do mundo
em parcerias e mutirões de muitos tipos. Aprendemos também a suprir, ainda que
precariamente, as carências e dificuldades individuais ou de grupos e classes
sociais.
Um dos momentos em que essa
capacidade humana de ser palhaço se manifesta de modo paradigmático é o
carnaval. Não por acaso, a imagem do palhaço é o símbolo universal dessa festa.
Mas o carnaval tem também a função catártica de liberar as pessoas de suas
obrigações cotidianas, de permitir que cada um deixe vir à tona o que precisa
reprimir durante o resto do ano. Para que isso não prejudicasse a imagem
laboriosamente construída nos outros dias, inventaram-se a máscara e o
disfarce.
Entre nós a fantasia como
disfarce está cada vez mais relegada aos clowns de subúrbio. Será que o
fato de esses artifícios estarem caindo em desuso significa que a catarse está
perdendo terreno para o papel do palhaço?
6 comentários:
Seu texto lembrou-me o "acrobata da dor" de Cruz e Souza, em que o poeta compara o palhaço ao coração: "Gargalha, ri, num riso de tormenta, / como um palhaço, que desengonçado, / nervoso, ri, num riso absurdo, inflado / de uma ironia e de uma dor violenta."
Abraços
Oi Adelaide.
Concordo com a tua constatação sobre a necessidade de trabalharmos em nós a habilidade do palhaço, isto é "se mostrar disposto, apto e até divertido diante de todos", independente se as circunstâncias que nos cercam são tristes ou desfavoráveis. Procuro exercer esta arte com radicalidade, sendo que o maior teste aconteceu recentemente - o tal de AVC-, quando confirmei que rir é o melhor remédio, como recomenda a sabedoria popular.
A exemplo de Picasso (olha a pretensão entrando na avenida), gosto de pensar que sou um clown que aprendeu a rir de si mesmo e ri de e com o seu mundo.
Beijo e sorrisos pra você. Tenha uma boa semana.
No carnaval, as máscaras são retiradas, ao contrário do que acontecia no passado. Acabou o carnaval, e voltam as inúmeras máscaras do restante do ano.
Mas o palhaço é uma figura que já vive no nosso imaginário. Esse é um personagem que eu já quis viver, e num circo, de preferência! :-)
Sempre muito bacanas os seus textos...
Beijos,
Linda referência, Maria Teresa.
Beijo e obrigada.
Jens, gosto tanto de suas apreciações (epa) que leio e releio para assimilar melhor.
Beijo
Os palhaços são uma das alegrias do mundo.
Obrigada pelo lindo comentário.
Beijo grande.
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