sábado

Além das palavras

Solidão. Foto sem menção de autor.


Ninguém no mundo dos homens pode se considerar de todo amadurecido antes de perder alguma coisa ou pessoa que tenha representado muito em sua vida – um amigo, um amor, uma crença, uma certeza ou – como agora se tornou tão frequente, com os últimos acontecimentos da política – uma ideologia pela qual lutou e sofreu. É uma certeza dura e fria, que se adquire depois que muitas outras certezas se foram.
Uma grande perda faz com que a gente se perca um pouco de si mesma. É como se nos tirassem um pedaço, um lugar próprio, um alicerce. Como uma árvore sem raiz, uma construção sem fundamentos de repente. Grandes amigos são parte de nós, e quando Caetano diz que a amizade é superior ao amor, sabe o que está dizendo: perder um amor é um verdadeiro trauma, mas em geral o tempo se encarrega de amenizar esse sofrimento. Ver desaparecer um grande amigo, no entanto, daqueles fraternais, com que se conta pra qualquer ocasião, daqueles difíceis de encontrar, mas que às vezes nos são concedidos, é uma dor que nunca mais tem fim. E quando se perdem ideais que nos davam força e razão de lutar e viver, a vida parece vazia.
Ninguém deseja perdas, por menores que sejam. Mas a vida se encarrega de provê-las, e elas acontecem e nos afetam. Essa inevitabilidade, essa impotência diante do irremediável nos transforma, para o bem ou para o mal, em pessoas diferentes. O resultado final depende em cada um, de como elabora e consegue lidar com os golpes que a vida desfere. Depende das reservas subjetivas e da qualidade do caráter do perdedor.
Os livros de auto-ajuda nos recomendam uma atitude positiva diante da vida, e de tanto repetir isso ficamos sugestionados. Mas nem todos podem ganhar. A vida real não manda cartão de boas festas nem respeita o pensamento positivo. A vida real não tem a menor educação; golpeia quem encontra pela frente sem nenhuma razão e sem pedir desculpas. Sem aviso prévio desilude, pratica injustiças gritantes, arranca da gente filhos, pais ou amores. É cúmplice de juízes malignos, ídolos desmascarados, homens e mulheres violentos e crueis.
Meu palpite é que talvez seja mais produtivo pensar sobre como melhorar a realidade que nos cerca. É melhor promover mudanças do que embarcar em palavras que, por mais bonitas que sejam, são vazias como bolas de encher.

Wisnik e eu escolhemos Marina


Em sua coluna no Segundo Caderno de O Globo, hoje, José Miguel Wisnik fala do encontro de Marina Silva com gente da área cultural em São Paulo. Os comentários versam sobre o que se disse, no dia seguinte, sobre o encontro no site da UOL.
Wisnik, que admiro há muito tempo como uma das cabeças mais lúcidas e dignas de respeito entre os pensadores de agora, faz uma crônica moderada e bem articulada. Lida com atenção, no entanto, percebe-se em seu texto uma crítica, quase uma denúncia, sobre a superficialidade que informa quase todos os textos do tipo. Crítica, porque as opiniões emitidas partem de premissas impensadas, possivelmente comprometidas com posições prévias que impedem uma visão imparcial da questão em pauta.  E denúncia porque, em jornalismo, não se pode abrir mão de alguma isenção, mesmo que o autor do texto pertença a outra vertente ideológica ou partidária.
Mais especificamente, ele alude a uma confusão que se estabelece entre a religião de Marina, com as convicções pessoais daí decorrentes, e sua capacidade de ver claro o lugar das diferenças na sociedade. Não é justo dizer que Marina “nem pode ouvir falar” em questões como o casamento gay e a legalização do aborto e das drogas. Diz Wisnik: “A capacidade de fazer essas distinções com clareza é, aliás, uma das coisas que mais me chamam a atenção no discurso dela”.
Inteiramente de acordo. Se Marina fosse uma fanática, nem me passaria pela cabeça votar nela. Não é. Marina sabe o que está dizendo e sabe também ser muito objetiva quando se posiciona diante das questões sociais.

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Lenine canta 'Paciência'

NY, 11 de setembro









FOTOGRAFIA DE 11 DE SETEMBRO

Atiraram-se dos andares em chamas.
Um, dois, ainda alguns,
mais acima, mais abaixo.

A fotografia deteve-os na vida,
preservou-os
sobre a terra rumo à terra.

Cada um ainda na íntegra,
com rosto individual
e sangue bem guardado.

Ainda há tempo
para os cabelos esvoaçarem
e do bolso caírem
chaves e alguns trocos.

Ainda estão ao alcance do ar,
no âmbito dos lugares
que acabaram de se abrir.

Só duas coisas posso por eles fazer:
descrever este voo
e não acrescentar a última frase.

WISLAWA SZYMBORSKA
(de Instante, tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves, Relógio d'Água, 2006)



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ABAIXO A REALIDADE

Poemas Reunidos
No próximo dia 15, acontece na Livraria Argumento do Leblon o lançamento e sessão de autógrafos do livro Poemas Reunidos, de Geraldo Carneiro. Na ocasião serão exibidos os filmes "Miragem em abismo", de Eryk Rocha, e "Rascunhos do tempo", de Jorge Brennand, sobre a poesia e os poemas do livro.
15/09 a partir das 19:00 Livraria Argumento, Leblon, Rio de Janeiro (Rua Dias Ferreira, 417)





Exercício da noite




Amanhã começa outra vida. Uma vida que rói as vísceras, uma ansiedade florindo em redoma. A noite veloz só anuncia: coisas novas chegam amanhã. Como será te deixar para trás? Como será deixar de doer assim calada e passar a doer em liberdade rasgada? Será que brota desejo em terra mais fértil? A vida se adianta como miragem e renasce sempre mais adiante. Talvez descubra que chegou o fim e não haja mais nada a desejar, e poderei enfim viver de minha própria carne.
Mil vezes já passou esta noite. Mil vezes ela foi ensaiada em desespero e paciência e agora irrompe diante de mim e me deixa calada de saciedade. Um pouco de temor do desconhecido, é verdade. Uma felicidade corrosiva e difícil. Como será recomeçar do que nem se conheceu? Minha vida é uma trama oriental de muitos tapetes, e você me ajudou a tecer agonias como grandes estofados bizantinos num palazzo veneziano alagado de medo.
Não me apresento bobamente para tua aprovação, não fujo como em outro tempo e também não suspiro mais por você. Não te consulto – eis a grande novidade. Estou em outra dimensão da vida, uma dimensão que você não conhece e não está autorizado a freqüentar. Agora preparo mosaicos em imensos painéis que podem se animar a qualquer momento e preencher o céu com desenhos sem utilidade prática. Posso me dar ao luxo.
A glória que você podia me oferecer é uma grande morte com que não conto. Vou voar em outra direção, talvez na direção do capim que se alonga, e minha imagem vai renascer disso. Ainda não conheço todas as imagens de meus painéis. O resto se abre como o céu e você não está nele.
Estradas esquecidas que o carro desperta, estados sonolentos que passam velozes, tempo quase ausente. Quero ter tempo para experimentar. Pressentimentos como flores invisíveis em copas muito altas. Como você é fútil. Pensa que sabe tudo. Pensa que já decidiu o destino do mundo e não tem sequer os diagnósticos, porque o espaço é pouco para o mundo e você. 
         Alguém vigia e avisa: há vida lá fora. Um golpe traiçoeiro derrubou o dono da noite. Amanhã é outro dia. “Tá com enxaqueca outra vez?” Meu riso explode, escapa escandaloso. Pequeno gesto de reprovação: “que boba”, você diz. “Que é que você tem na cabeça?”