É
bem comum as coisas acontecerem fora das grandes linhas, muito mais na cabeça
ou na pele das pessoas do que no plano objetivo. Jogando com palavras como quem
joga com espelhos, pode-se chamar realidade a um conjunto de planos encadeados
onde a imagem que aparece aos olhos do observador é fruto de um intrincado de
outras imagens, total ou parcialmente invisíveis, por causa das quais se chega
a ver alguma coisa, imagens que no entanto permanecem preservadas na penumbra
dos aposentos, nas distâncias do tempo e do espaço e nos limites, voluntários
ou não, do silêncio. É provavelmente o plano privilegiado do individualismo,
porque é fácil nesse estágio dar de ombros para os outros. É fácil seguir
adiante, e até já se consagrou essa atitude com o célebre não tenho nada com isso, e se ensina às crianças não se meterem na
vida dos outros.
Mas
é difícil dizer isso quando se vê adiante, quando se devassa o domínio que está
por trás do primeiro plano, da imagem pública. Mais difícil ainda quando a
imagem secreta extravasa e se mostra a olhos um pouco menos incautos.
O
ser humano se identifica na imagem menos exibível do outro, no sofrimento do
que poderia ser e não é, inspirado por sentimentos ditos nobres que acionam
seus recursos, a bagagem de suas experiências, e o levam a querer resolver
problemas que poderiam ser seus – ou aproveitar-se deles em benefício próprio.
A
fraqueza de alguém serve no mínimo para exaltar o cavaleiro andante que há em
cada pessoa. Mas para cada masoquista solto no mundo existe pelo menos um
sádico atento.
Ninguém
é somente uma imagem de primeiro plano. Por trás dessa imagem visível, a dos
jornais, a dos olhos alheios, toda uma sementeira se plantou, o caleidoscópio
girou muitas vezes, e o que o garimpo do tempo deixou passar foi, no mínimo,
uma falsa pepita. Por isso, cuidado. Não se deve deixar grassar o engano.
Não
se trata do lobo em pele de cordeiro que todos nós somos, ao menos de vez em
quando. Trata-se de coisa mais sutil e imponderável. Coisa que pode fazer de um
marido de muitos anos um completo estranho; de um amigo dos tempos de escola
uma completa surpresa e de um filho um inesperado inimigo.
É
importante que não se esqueça nunca de ir, progressiva ou retroativamente,
colocando na balança os dados novos e tirando dela os que deixaram de existir
(às vezes os dados se anulam uns aos outros). Mesmo assim, com todas as
precauções, pode-se subestimar ou até deixar de perceber fatores importantes. E
ter a surpresa de, na primavera, encontrar uma árvore seca e crestada, e no
verão acordar sentindo frio.
Por
isso é preciso registrar, de vez em quando, que as grandes linhas –
nascimentos, casamento, filhos, separações, doenças e mortes – são a um tempo
os dados da imagem pública, a biografia do homem civil e o resultado de uma
montagem cujas peças começam na cabeça ou na pele das pessoas. Esses fatos
civis, universais e noticiáveis têm uma estrutura íntima, imponderável, pessoal
e secreta, que resulta em grandes paineis de mosaicos e cores só previsíveis se
formos capazes das sutilezas de observação e autoidentificação.
Consegue-se
tal observação com certa dose de isenção sem indiferença, solidariedade sem
pena e lucidez sem frieza excessiva. E acima de tudo com raízes fincadas na
certeza fértil de que ninguém é tecido por fio único, tem uma só cor ou brilha
sempre com a mesma intensidade. Porque até nosso rosto é sempre outro, ao longo
do tempo, e de nossos cabelos não se espera senão que embranqueçam.
2 comentários:
Isso é sabedoria, Dade.
Beijo :)
Belo e reflexivo texto: gostei muito!
Beijos,
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