Escrever era só a sobra. O que restava depois que o dia ia se cumprindo e
ela cumpria seu papel – a casa bem cuidada, as garotas na escola, o almoço bem
temperado, a roupa limpa e guardada, não fossem os vizinhos – ou pior, o marido
– chamá-la de relaxada. Tinha uma reputação a cuidar. Dias ainda havia para as
compras, estantes e tanta coisa por limpar e arrumar. E sempre, sempre os
eternos ciscos, migalhas nas bancadas da copa, poeira aqui e ali, a gordura no
fogão. Tinha empregada, sim, mas essas empregadas cada dia fazem menos e saem
mais cedo, uma lástima: todas relapsas.
E ao fim do dia, os momentos de ócio necessários para azeitar as idéias e
deixar fluir certa energia semicósmica – porque em parte vinha era de dentro.
Nem sabia se era mesmo energia: era mais concreto, como liberar alguma coisa
física, um miniparto. E porque nada ainda estava dito, era então preciso colher
palavras, limpar a terra, o sangue, a aura estranha, revirá-las sobre o teclado
e plantá-las no monitor entre as outras, em sequência de alguma lógica, às
vezes nem isso. Sentir e pesar seu efeito, seu tempo de validade, porque às
vezes ficavam murchas, pobres, indigestas ou indigentes de sentido, caso em que
nada resolviam de sua necessidade: as palavras são como as cores para o pintor.
Há um efeito final a levar em conta que, esse sim, vem de dentro, e é preciso
ser-lhe fiel. Então deixava passar um tempo e voltava a elas, as palavras.
Assim podia ter uma idéia mais clara do que estariam fazendo ali, corrigir algum
rumo sem destino como um piloto em
voo. O voo era sempre meio cego.
Havia tardes e noites em que as palavras pareciam fluir tão facilmente, e
ela enchia páginas e páginas seguidas, contente, realizada, achando o tempo um
sonho. Mas não durava muito e a dor secreta dos dias voltava a se insinuar. A
dor era sempre, não cessaria nunca e se expressava de um jeito surdo, devorando
as entrelinhas. Chegava de leve, depois aumentava de intensidade e afinal
causava um mal-estar que a obrigava a se curvar como quem carrega um peso maior
que suas forças. Então às vezes apareciam poemas no monitor.
Um comentário:
Dade,
Esse sentir, essa angústia, é linha comum, é tentar arrumar o que não ser arrumado, é tentar ver mais no que se adivinha infinito...
Texto muito bom!
Beijo :)
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