O que tivesse de ser, somente sendo
Estilo anfigúrico (à maneira de Guimarães
Rosa) – Millôr 1998
No contravisto do caminho, Capuchinho Purpúreo
ia à frente, a com légua de andada, no desmedo da floresta.
O bornoz estornava demasias de gula,
carnalidades, guleimas, bebeiras e pitanças pra boca de pessoa, a vó, sem nem
aviso antes. Sente o muito bicho retardar, ponderado. Hora de poder água beber,
esses escondidos. Por ali sucuri geme. O céu embola no brilho de estrelas,
cabeça de Chapeuzinho vai que esbarra nelas. É um escurão que peia e pega. Dali
vindo, um senhor Lobo, na frente da boca todos os demais dentes de caso
quisesse.
- Se é, sê, linda menina, que parece dispor de
muita virtude na pressa desse aonde.
- Nada, nada vezes – disse, e pensou
Capuchinho, deve ser o Incapacitado, no irreconhecível do demônio. E nem
indagou nonada, mas Lobo no após, santificado de maldade, ensoou que só estava
na busca do significante de sua indagação. Consoante falou soez, amiudado, com
propósito de voz.
Capuchinho arrenegou e, suspendida no fôlego,
atravessou o Pardo e o Acari, pela Vereda do Alegre, no célere do pressentido.
O lobo, coração quejando nas esquerdas foi pelo Piratinga, que é fundo, mas
subindo beira desse, se passava. Chegou em inhantes, não muitos, com tempo de
assinalar à vó outros caminhos, só você entende, compadre Quelemém, e se botou,
assim deitado coberto, na espera que o que viesse vinha – o que não é de Deus,
é estado do Demônio.
Capuchinho foi chegando, mostrou papanças e
pitanças, salivas de goelas, bocas e queixadas, e daí deu-se ver na vó sinais
discordes.
- A ser, avó querida, no desarranjo da forma,
sem falar feieza, suas orelhas desmandam.
O velho lobo, no entendido da hora disse que
na velhice os sons se vão-se e a orelha sai em busca, o nariz dá no mesmo de
comprido tentando tragar cheiro esfugido. E que os dentes vão crescendo pro
Vups, que ele deu logo na garganta da carótida salutar da carne doce doçura.
E pois, pelos entretantos, dito Zé Bebelo,
provedor da estúrdia forca de enforcar no morrote de São Simão do Bá, se apareceu,
ele mesmo em sua pessoa, de laço e baraço devido restante enforcamento.
Capuchinho, agora pois, no choro. Nem todo mundo carece, mas tem os que. No
mais, nada. O que termina acaba.
Viver é muito perigoso, compadre meu Quelemém.
MIllôr Fernandes
Tragédia de Paixão
Estilo telúrico (à maneira de Raquel de
Queiroz) – Millôr 1949
O caso triste deu-se por estas bandas - ela
magrinha e jeitosa ia passando pelo caminho do Quixadá levando no braço a cesta
de baba-de-moça e de pudim de coco que a mãe fizera para a vó quando o tipo
forte, grosso, simpático, saltou dos matos e interrompeu-a: "Onde é que tu
vai com esse chapeuzinho tão vermelhinho na cabeça?" Ela ficou de medo
rija, mas ao mesmo tempo achava o moço simpático, disse que ia ali mesmo levar
uns negócios pra vó, ele perguntou aonde, disse se não podia acompanhá-la. Ela
se fez de rogada, abanou que não.
Mas o tipo era sabido, conhecia a redondeza,
atravessou a ribeira, pulou o cercado, arrodeou o açude, afastou os porcos na
engorda por trás da casa do Chico Vira-Mão e foi desembestar suarento e
resfolegante na casa da avó da Cabecinha Encarnada. Só teve mesmo tempo de
matar a velha, enterrar embaixo da banheira e se deitar na cama que já as
batidas fracas na porta diziam que a mocinha estava ali. Diz que ela entrou,
botou os doces em cima do baú e foi dar uma palavra com a vó que há muito não
via. Estranhou e perguntou: "Vovó, por que a senhora está com orelhas tão
grandes?" A vó respondeu que estava ficando velha, que orelha de gente
velha vai mesmo crescendo, depois explicou a ela que seu nariz estava assim
porque ela tinha pegado um golpe de ar e, na hora em que a mocinha perguntou
por que aqueles dentões tão enormes, o tipão já não deixou nem ela ter tempo de
falar mais nada, tapou-lhe a boca, puxou uma peixeira e tome facada.
Foi preso, está esperando condenação. Aos
jornalistas diz que não se arrepende, que tinha amor, depois teve o amor
transformado em ódio e que prefere ver ela morta que com cara de nojo pra ele.
Diz que prisão por prisão prefere mesmo essa, que homem foi feito pra sofrer
duro mas não para penar de mulher viva.
Millôr Fernandes
6 comentários:
Que paródias pra lá de geniais! A história de fada original sentiu-se mais que homenageada! Adorei.
Beijos
Bravíssimo, Dade!
A genialidade de Guimarães Rosa e Raquel de Queiroz. Cada qual em seus belos estilos.
Beijos
Mirze
UM Millôr de uma coerência e de uma agudeza de espírito até final!
Um Homem ímpar!
Maria Teresa, o Millôr era demais.
Beijo beijo.
Mirze, sem contar a genialidade do Millôr.
Beijins.
Disse-o bem, mfc, um homem ímpar.
Beijos.
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