Calçadão de Copacabana. Sem menção de autor.
Acordara tão feliz naquele dia que deu dez reais ao mendigo à saída da
faculdade e logo depois viu que tinha ficado sem dinheiro para a passagem.
Tentou uma carona, mas o colega ia para o lado oposto da cidade. Lembrou então
do pai, que àquela hora devia estar ainda no escritório da rua do Ouvidor.
Correu para lá e o pai já tinha saído. Ligou para casa, é, mãe, estou sem
dinheiro. Toma um táxi, a gente paga aqui - mas às sete da noite é uma coisa
meio difícil, começava uma chuva de verão e ela teve a desagradável sensação de
que nunca mais conseguiria voltar para casa.
O bom humor da manhã era agora uma
vaga lembrança. Perdeu um táxi para uma velhinha simpática, outro para um
sujeito grosseiro que fingiu não ter visto seu sinal e outro para uma mulher
cheia de embrulhos com um garotinho a tiracolo. Descabelada, as sandálias
ensopadas, avançou para um carro de que desembarcava uma criatura imensamente
gorda. Junto com ela, duas mulheres falando aos gritos e dois sujeitos
mal-encarados, sem falar no velhinho magrelo e rabugento, forçavam a passagem,
um cotovelo ossudo em suas costelas, o guarda-chuva quase furando seu olho. Não
saberia dizer como, mas ganhou a parada. Sentada no fundo do carro, os cabelos
escorrendo, água entrando nos olhos, ainda pôde ver o gesto obsceno do velhinho
e a cara de ódio dos sujeitos e das mulheres. Largou-se no banco, suspirando
aliviada. Copacabana, disse ao motorista, rua Miguel Lemos. Estavam na esquina
da Evaristo da Veiga e o motorista diminuiu a marcha e se virou para ela. Ah,
moça, não vai dar, disse com um meio-sorriso. Acabei de vir de lá, está tudo
engarrafado, e além disso eu hoje nem almocei. Não leva a mal não...
A raiva a
fez pular do carro na calçada alagada sem olhar para trás. Nem no abrigo do
ponto de ônibus havia lugar para escapar do aguaceiro. Dez minutos, quinze,
vinte minutos e nada. De repente sentiu que alguém a segurava pela cintura e se
encostava nela. Olhou meio assustada meio esperançosa de encontrar um amigo
qualquer, e viu um rosto estranho, até bonito, com um sorriso resplandecente,
que sussurrava em seu ouvido: ri pra mim e me passa a carteira e o relógio que
vai dar tudo certo. Sentiu as pernas tremerem e de repente desatou a rir como
uma louca, sem o menor controle. Não precisa exagerar, disse o sujeito, olhando
em volta rapidamente. Ela não conseguia parar. Achou fôlego pra perguntar: você
tem algum dinheiro aí? Eu?! ele, atônito. É, só pra eu poder pegar o ônibus.
Sentiu então a pressão nas costelas. Não sacaneia. Me passa logo o dinheiro e
o... É sério não tenho um tostão, estou ensopada e vou pegar uma pneumonia.
Você ao menos tem uma jaqueta de couro. O rapaz pareceu perturbado e ela teve
uma idéia: olha, se você tiver dois reais aí pode levar meu relógio. Ele
afrouxou o abraço e lançou um olhar às pessoas que se amontoavam no abrigo da
parada de ônibus. Ninguém tinha se tocado. Enfiou a mão no bolso da calça e
puxou duas notas amassadas. Disfarçadamente ela tirou o relógio e o entregou.
Ele baixou a cabeça e sumiu no buraco do metrô, enquanto ela disputava um
espaço no ônibus quase aos tapas, espremida, aliviada e sem mágoas.
6 comentários:
Belo escrito. O desapego aos bens materiais se dá de modo muito tênue, quando notamos que não há nada melhor do que chegar à casa!
Muita Paz!
MUITO BOM!
Já passei por algo assim, só que não chovia e minha timidez, me fez vir do Centro para Copacabana à pé.
Nunca mais deixei de conferir dinheiro extra e chave.
Excelente, Dade!
Beijos
Mirze
A subtil difrença entre o principal e o acessório.
Entre a vida e... a sua ausência!
Obrigada, Cristiano, gostei de ver você por aqui.
Abraço.
Mirze, esse tipo de situação pode ter muitos finais, alguns nada felizes.
Beijo grande.
Pois é, mfc, pois é...
Beijo.
Postar um comentário