sexta-feira

Sábado no supermercado



Era ele. Olhou de novo para confirmar. Era ele. Um pouco mais gordo, levemente grisalho, a cabeleira intacta. Tinha velado orgulho de seus cabelos negros.
Isso aos dezesseis anos, quando o conhecera numa festinha de aniversário. O olhar dele tinha sido mais de curiosidade que o voo dela. Ela o quisera de um jeito surpreendentemente maduro e forte. Um querer de gata farejando o macho. Ele manifestara uma espécie de temor, os dois de mãos dadas, como se achasse obrigação sua temer alguma coisa. Papel de homem. Mas o abalo sísmico que a sacudia o alcançou também lá pelas três da madrugada, em frente ao portão do prédio onde ela morava, debaixo da lâmpada amarelada.
No dia seguinte tinham-se encontrado na Quinta, no gramado da Quinta. Sentiu-se de novo opressa entre ele e o chão, querendo-o até a destruição de si mesma, o coração batendo forte de encontro ao peito dele.
A primeira briga tinha acontecido na festa de fim de ano da escola. Gente demais em volta, um discurso careta, três discursos caretas, era demais. Na noite do dia seguinte, porém, no baile de formatura, a noite transfigurada num silêncio vasto e fundo que só os dois ouviam, cavado na música da orquestra, as mãos dele mergulharam pela perna dela acima, ela paralisada no gesto de palpitar, quase saindo pela própria boca e transbordando pela dele. Sentiu de novo a barba incipiente arranhando seu ombro. Ela resistia pelo simples instinto de descobrir até quando e quanto ele a queria.
Reviram-se na casa de Maria do Carmo, todo mundo eclodindo, ela num canto perto da estante de vidro onde pudesse sentir o hálito da fala dele, o atrito dos gestos, a discreta carícia. A textura de suas camisas lhe ficava gravada como uma pele, sabia de cor uma por uma, a atração quase vertigem era uma ânsia que lhe dava uma espécie de brilho, uma febre sem esperança de cura, sem vontade de cura.
“Você está suando, por quê?” “Não sei” — ele fechava o abraço que era como uma nuvem quente e carregada de eletricidade.
Que culpa tinha? Quem teria culpa? A família pressionava, não entendia, era contra. Ela simplesmente ignorava, deixava as queixas se amontoarem, a guerra correr sozinha e ia para o banco da praça com ele. Sentiam-se estalar de tanto desejo, pulsando no banco como num ninho; era um fato obscuro e quente na tarde cercada de escolares, o cheiro das pastas de couro se expandindo pelo céu, pelo canteiro de flores vermelhas e carnudas. Iam chegar mais longe juntos, o impulso estava neles: iam chegar juntos até onde ninguém no mundo ainda chegara, ultrapassar todos os limites, derrubar todas as cercas.
“Eu quero dúzias de filhos e uma casa cheia de varandas como essa aqui” — ele disse uma tarde, apontando para a casa próxima da esquina, que ela sempre admirava calada. “Eu também quero essa casa” — ela respondeu espantada.
Tentava chegar à intenção dele, mas não percebia bem uma trajetória que a levasse até lá porque não havia caminho que o atravessasse. Seus caminhos terminavam todos nele, limitavam-se a ele, e o resto era uma nebulosa que não lhe interessava.
 Ele trouxe uma chave. Era sexta-feira. Falou do irmão mais velho que viajara, mostrou a ela a chave douradinha e recortada, letras gravadas debaixo do furo em semicírculo. Jamais esqueceria aquela chave enquanto vivesse. Desejou tanto saber se também ele, que agora era aquele senhor de ar acomodado (tirando as bolsas sob os olhos, talvez não dormisse bem agora), de ar resignado, ele se lembraria? Moonlight Serenade. Ela teve medo naquele dia, no apartamento vazio, e se aparecesse alguém, se o irmão voltasse? Ficou um pouco paralisada de medo, mas não durou muito. Fechou os olhos para lembrar, rever a sala, o enorme sofá de tecido grosso e rústico que ela alisava como se fosse uma cabeleira bem penteada. O relógio dourado com o casal à Luís XV em cima do aparador. O sem-jeito do primeiro momento, quando chegaram ao quarto. O sangue circulando mais quente e mais rápido, os corpos se descobrindo, os beijos sem fim, os olhos percorrendo o que ainda não haviam conhecido, a pele na pele, a imposição corpo adentro daquele volume e a sensação de delírio incontrolável junto com a dorzinha fina, rápida, que logo se deixou vencer pelo prazer. Perderam a noção do tempo, dormiram sobre o tempo e acordaram para recomeçar e não querer sair nunca mais daquele quarto onde o teto tinha enfeites de gesso branco e o lustre era como um grave inseto de vidro fosco.
           Procurou-o de novo entre as pessoas em movimento perpétuo. Por um momento julgou que o perdera de vista, mas depois tornou a vê-lo, estava junto à prateleira das massas. Cindida entre chegar perto dele ou continuar lembrando. Entre olhar os olhos de agora, dizer que ninguém havia sido igual a ele ou ficar ali imóvel e deixar que ele se perdesse. Teria conseguido sua penca de filhos? 
           Agora, acasalada consigo mesma num canto ao lado da bancada dos inseticidas, cercada de caras sem história, via-o aproximar-se distraído, atirar um cigarro no cinzeiro do fim da seção onde ela estava a uns três metros de distância. Ia passar por ela. O coração aos pulos, chegou a esboçar um gesto na direção dele, mas a voz se recusou a sair. Concentrou-se para sentir o cheiro discreto a centímetros dela. Desejou de repente abraçá-lo com tamanha ânsia que foi preciso cravar as unhas na palma da mão. Por que não o abraçaria? Não, não ia fazer isso ali, de surpresa. Não sabia nada dele além daqueles dias e tudo ia muito longe, era impossível agora agir em nome do tempo em que ele era outro e ela o queria como um bicho. Sentiu os olhos se encherem de lágrimas e a garganta fechar. Não queria um cumprimento cordial ou cerimonioso, não ia suportar se ele demorasse a reconhecê-la. Engoliu em seco e seguiu aquele senhor grisalho por alguns passos. Espezinhada e fascinada, viu-o encontrar na fila da caixa uma mulher morena e esguia, de sorriso um pouco cansado e simpático que o esperava junto a um carrinho atulhado de compras, cercada por três adolescentes que exibiam os traços combinados dos dois, um com os olhos dele só que um pouco mais baixo, de aparelho nos dentes; uma menina alourada com o sorriso da mãe sem cansaço. Eram elegantes como a mãe, mas a vitalidade era a dele, os olhos brilhavam como os dele vinte e cinco anos atrás. Alguma coisa dentro dela estalou num estado neutro e profundo como o sono.
Olhou o relógio de pulso e voltou até onde deixara seu carrinho. Apressada escolheu a fila mais curta sem olhar na direção por onde a família encaminhara seus sorrisos e suas compras. De longe, ela os traduzira como um fim de história, um fim que de longe parecia bonito para uma das duas histórias que haviam começado no dia em que os pais a embarcaram para a Califórnia com um contrato de permuta. “Ao menos ele”, pensou com um sorriso e um nó na garganta.
Em pouco tempo estaria de volta a seu apartamento minúsculo preparando um sanduíche e se arrumando para sair com seu caso mais recente, um empresário cinqüentão, divorciado, sofisticado e com um leve defeito na perna esquerda.

8 comentários:

mfc disse...

A história de uma infelicidade que se prolongou e foi substituída por uma outra infelicidade que ainda permanece!
Uma história bem real muito bem escrita!

Átila Goyaz disse...

"Concentrou-se para sentir o cheiro discreto a centímetros dela. Desejou de repente abraçá-lo com tamanha ânsia que foi preciso cravar as unhas na palma da mão. "

Isso acontece muito no mercado, tudo termina mesmo no caixa, ou numa caixa.
Adorei!

Bípede Falante disse...

A vida como ela é sem tirar nem por, se bem que tem o por do seu talento e da sua sensibilidade :)
beijoss

dade amorim disse...

mfc, grata por sua querida presença.

Beijo.

dade amorim disse...

Pois é, Átila, um comentário nada bárbaro. Obrigada, viu?
Abrço grande.

dade amorim disse...

Lelena, adoro quando você vem aqui.

Beijosss.

Rejane Martins disse...

Muito legal esta tua crônica, Dade.
Bem construída, leve, livre e solta, densa e divertida.
Deixo-te um abração por aqui.

dade amorim disse...

Obrigada, mesmo atrasadinha, querida Rejane. Gosto de seus comentários, muito.
Beijos.