Quando
resolvemos casar, Dilo e eu sabíamos que nossa vida em comum não seria como a
da maior parte dos casais que conhecemos. Não conseguimos imaginar um dia-a-dia
de renúncias e submissões, sempre lutando contra para conseguir levar a vida
adiante. A gente quer sempre lutar a favor. Já chegam as obrigações de
trabalho, as horas marcadas e o corre-corre para comer o tal pão com o suor do
rosto (argh!). Por isso combinamos que nossa casa tem que ser arejada, alegre e
cheia de sol. Onde cada dia seja realmente novo, onde haja lugar para surpresas
e improvisos. No que depender de nós, queremos dar sempre alegria e bem-estar
um ao outro.
Para
começar, separamos um quarto para o amor e o resto da casa ficou para a
amizade, o companheirismo e a solidão, quando der na telha de um ficar sozinho
(às vezes é muito preciso, pode acreditar). No quarto, a condição é não duvidar
de nada e confiar sempre. Temos uma comunhão universal de propósitos, e a
felicidade veio morar com a gente e não parece disposta a mudar de endereço.
Cada um diz ao outro as coisas de modo natural e nunca, nunca mesmo, faz com
que ele se sinta desrespeitado. E acredita em tudo que o outro disser.
Cumplicidade completa.
Não
é invenção do machista da dupla, planejando me passar pra trás e pular a cerca
sem conseqüências. A maioria das mulheres ainda pensa assim. O trato vale para
os dois do mesmo jeitinho. Queremos ficar juntos, é tudo que mais queremos
nesse mundo. Mas se entre nós se interpõe a vida com suas exigências
inesperadas, somos realistas o suficiente para entender que não há como lhe
resistir. A vida é sempre mais forte. Um dia ela nos pega pelo pé. É uma
decisão nossa, e pode acreditar que não há cinismo em pensar desse jeito. Não é
o que chamam “casamento aberto”, porque não há propósitos. Fizemos um pacto: as
coisas têm que acontecer espontaneamente. Eu sei que é difícil de acreditar.
Mas enquanto o outro quiser ser acreditado, é sinal de que não desistiu do
grande encontro, da cumplicidade total nem do segredo nem de nada. Isso é o que
vale para o amor – que a gente ainda se queira acima de todo o resto, seja lá o
que for, que cuide um do outro como a coisa mais importante do mundo. Que o
amor seja do tipo que traz também amizade e confiança. A gente só acredita em
casamento se for desse jeito.
Pode pintar
ciúme, faz parte da coisa toda. Não é proibido, é até um bom sinal. Mas não
pode ficar solto feito bicho brabo. É parte da gente, tem que ser tratado com
carinho pelos dois como um aliado que vai nos levar à reconciliação (quer coisa
mais gostosa que se reconciliar?). Depois, não é proibido brigar. É mesmo
impossível não brigar nunca, já que, por mais cúmplices, somos dois. Se a gente
não tivesse a liberdade de brigar, ia acabar numa camisa-de-força se odiando.
Mas está implícito que a liberdade deve valer em todos os casos, e se acontecer
o que agora nos parece impossível, mas a experiência diz que pode acontecer – o
amor ficar doente ou até morrer – o carinho não morre. É uma delícia saber que,
aconteça o que acontecer, seremos sempre amigos, cúmplices e se possível
confidentes. Grandes amigos, leais por toda vida.
Quanto
ao cotidiano, acontece justamente o contrário: é preciso duvidar sempre, manter
as inadequações funcionando e garantir um mínimo de diversão no dia-a-dia. Não
creio por exemplo que ele seja capaz consertar o banco do jardim, e faço
questão que ele saiba disso. Deixarei que experimente o martelo e os pregos,
mergulharei ternamente seus dedos inchados em gelo e, se o pior acontecer, bem
humorados jogaremos fora o banco de ripas quebradas que nos terá rendido uma
boa história para a próxima reunião com os amigos. Ele não levará a sério
minhas tentativas de conseguir um suflê mais leve que o de sua tia Aurora, mas
há de prová-lo com gula – e pode rir de mim se eu perder a aposta, porque
depois a gente vai se beijar. Seguiremos pelo dia-a-dia fazendo tudo que
desejamos sem abrir mão do direito de errar, experimentar e tentar de novo.
Caroços no mingau, infiltações no teto, arranhões no carro novo, tudo será
superado, mesmo que seja irritante – irritação libera adrenalina, e adrenalina
é ótimo pra viver.
Nos
casos críticos, como mágoas ou decepções, o segredo maior está em deixar a
discussão para três dias depois – passado portanto o momento cabeça-quente,
motivo maior das querelas fatais. Depois de frios, os fatos mais desagradáveis
podem render boas piadas e se tornar estimulantes. Mas quando não for possível
deixar de brigar, se a adrenalina transbordar e invadir o sangue como fogo na
pólvora, brigaremos pra valer. Sem agressão física, é claro, mas com licença
para exercer raiva explícita e atuante, valendo até quebrar jarras ou copos
(menos os do jogo de cristal). Ao contrário do que possam imaginar, tais crises
funcionam como poderoso afrodisíaco.
Sabe,
mãe, a gente quer se amar, porque é bom demais, e vamos tentar levar adiante
nosso plano de vida. Querer reduzir o outro a si mesmo pode estragar tudo.
Nossa casa tem que ter espaço para cada um do jeito que é.
Não
contamos a ninguém nosso segredo, mas afinal você é nossa melhor amiga e merece
partilhar dessa felicidade que inventamos. Isso vai tornar você a mãe bem-amada
de um casal feliz.
Muitos
beijos e todo o carinho de seus filhos
Lulu
e Dilo
PS:
Sei que você está pensando em como vão ficar as coisas quando tivermos filhos
(que nós queremos e você também, não pense que me engana!). Por enquanto só
podemos dizer que tudo que desejamos para eles é que aprendam a amar com a
gente. O resto se ajeita. Santo Agostinho disse “ama e faze o que quiseres”,
não disse?
6 comentários:
Fiquei pensando no sorriso da mãe, nos olhos marejados dela, nas mãos suando ao segurar a carta que ela gostaria não terminasse nunca mais. Fiquei pensando no quarto do amor e nos copos quebrados (menos os de cristal) espalhados pelo chão da cozinha, mas fiquei pensando também nesse amor que fez Lulu e Dilo serem assim, tão especiais e felizes, a ponto de escrever tudo isso que mexe fundo no coração da gente...
Beijos,
MTeresa
Que lindo, Dade!
Nunca consegui acreditar numa união estável desta forma. Talvez tenha casado (sem querer) na pior época do mundo.Hippies, ditadura e eu com 16 anos nada entendia. Naquela época o machismo imperava. Meu companheiro, alcoolatra e comunista tratava a mulher como capacho.
É! Para mim é impossível acreditar; Embora seja o ideal.
MUITO BOM!
Beijos
Mirze
Ter privacidade é essencial em uma relação em que há intimidade. E ter o cuidado de nunca dizer uma palavra imperdoável também.
beijos :)
Adorei esse texto. Muito!
Obrigada por esse comentário carinhoso e acima de tudo generoso.
VIndo de você, é muito bom.
Beijos.
Pena, Mirze, isso aconteceu com muitas amigas minhas. Talvez fosse mesmo uma questão de momento, de influências da época.
Beijo.
Obrigada, Lelena querida. Sua opinião é importante pra mim.
Beijo beijo.
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