Não deixava ninguém – ninguém mesmo, fosse quem fosse – sem
resposta pronta e que lhe parecesse à altura. Além de respondona, era também
precipitada, ansiosa e irrefletida – convenhamos, um porre de lidar. Tinha
perdido um emprego por causa do gênio irascível. O marido não resistiu: embora
fosse um homem reconhecidamente paciente e manso, mudou-se para outra cidade
com a cozinheira, pessoa calada e sorridente, que além de tudo fazia uma carne
assada de se comer rezando e um feijão sem igual. Os filhos viviam mortos de
vergonha com os micos que tinham que pagar. O pai cortou relações com ela e a
mãe só não se afastou também porque morreu cedo. Os vizinhos pouco a pouco iam
deixando de falar com ela, que via nisso um motivo para lhes infernizar a vida
sempre que possível. Já aos seis anos, ela desafiava a professora do CA
mostrando-lhe a língua e batendo o pé quando contrariada.
Um dia encontrou na rua uma carteira recheada de dólares:
eram mais de mil, em notas grandes. Nem um endereço, um nome, referência
nenhuma. Só as verdinhas, viçosas, tentadoras. Para os outros, porque além – e
apesar – de insuportável, era honestíssima e escrupulosa respeitadora da
propriedade alheia, o que fazia questão de propalar a quem quisesse e a quem
não estivesse a mínima interessado em ouvir – e que era a esmagadora maioria.
“Se entregar à polícia”, pensou com irrepreensível lucidez,
“vão afanar. Se puser anúncio, vão me assaltar. Melhor guardar e ficar
esperando algum sinal do dono.” Fez isso e pôs a carteira com a dinheirama numa
bolsa fora de uso, guardada por baixo de todas as outras no sobrado do armário.
Continuou vivendo a vida e fazendo das suas, e uns dias
depois viu num jornal um pequeno anúncio que não teria visto não estivesse
ligada no assunto: “Perdeu-se carteira com dólares na altura da rua Uruguai,
esquina de José Higino. Caso a tenha encontrado, queira entregar na portaria
deste jornal sob a senha 8.243. Gratifica-se bem.”
O coração acelerado, correu até o armário, pegou a velha
bolsa e retirou dela a carteira, que jogou na bolsa em uso. Arrumou-se
rapidamente e desceu para devolver o que não era dela. “Sorte dessa pessoa”,
pensava, jubilosa, contente consigo mesma. “Vai ver que ainda existe gente
decente no mundo.” Correndo para a rua, quase derrubou o vizinho do 302, um
homem de maus bofes com quem já tinha tido dois pegas dos grandes e que
imediatamente se virou esperando outro bate-boca. Nem olhou para trás. Deixou o
homem vociferando na portaria e entrou esbaforida no primeiro ônibus
para o centro. Depois achou arriscado fazer a viagem toda de ônibus e desceu no
metrô. Em quinze minutos entrava na redação do jornal, triunfante, sentindo-se
uma vencedora. A moça da recepção ouviu o que ela lhe dizia com um olhar meio
ausente, e pegou o interfone. Trocou algumas palavras que ela não chegou a
ouvir com alguém que não podia ver. Depois estendeu a mão para pegar a carteira
e lhe entregou um envelope fechado. Pensou em não aceitar a gratificação,
afinal não fazia mais que sua obrigação. Mas a moça já tinha sumido do balcão
da entrada e ela ficou sem saber o que fazer. Jogou então o envelope dentro da
bolsa e deu meia-volta em direção à rua, que lhe pareceu mais iluminada e
alegre que de costume. “É a boa consciência”, pensou, transbordando de orgulho
por seu gesto nobre, com um meio-sorriso e se sentindo um pouco mais alta e
melhor que as outras pessoas. No metrô, lembrou-se de abrir o envelope. Dentro
havia uma imagem de são Judas Tadeu com uma novena impressa atrás e um bilhete
que dizia: “Eis a sua recompensa. Foi ele que me devolveu essa carteira e você
foi seu instrumento. Sorria e sinta-se honrado porque ele o escolheu.” A coisa
colocada desse modo arranhou um pouco sua vaidade, e ela chegou de mau humor,
chutou o gato e jogou longe os sapatos.
Na redação, a moça da recepção entrara no banheiro e,
trancada por dentro, abrira a carteira para conferir: mil duzentos e quarenta e
cindo dólares. Arrumara então o dinheiro em maços distribuídos por lugares estratégicos
e, pondo a carteira vazia no bolso do uniforme, voltara rapidamente, porque não
podia se ausentar da recepção por mais de cinco minutos sem deixar alguém em
seu lugar.
4 comentários:
Que surpresa, o final, Dade!
É horrível lidar com pessoas assim, e conheço muitas que estão sempre de mal com a vida e apenas elas são as certinhas. Mas não esperava o comportamento da moça da recepção. Pode ter sido ela que sabendo colocou o anúncio, sei lá.
Enfim! O cômico foi o santinho de São Judas.
Excelente!
Beijos
Mirze
Dade, queria muito te dar um abraço hoje; desejar Parabéns e muitas felicidades ao vivo e em cores. Mas como não dá; deixo um beijo enorme e, saiba que mesmo com pouco contato ultimamente, você tem vaga cativa neste coração duplo libriano. Feliz Aniversário!!! (Ahhhh, não tenho FB; só Blog e Twitter; já fico doida com os 2....rs)
mundo? mundos e cada um com o seu, mesmo que sem sabermos bem qual. dizia-o pessoa, materializa-lo tu aqui neste soberbo conto.
beijinho, amiga!
Excelente texto, com final surpreendente. De parabéns, minha amiga Dade!
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