Foto Diogo Bras.
O anúncio dizia bem claramente:
experiência mínima de um ano. Tinha até mais. Graduação completa, inglês
fluente. Boa aparência. Boa aparência? O espelho dizia que sim. Tinha sim.
Discreta, até classuda, que é que eles iam querer mais?
Entrou no ônibus com o moral
elevado, salto alto, cabelos pra cima, nariz e tudo mais de direito devidamente
arrebitado. Pontualidade, atenção. Discreto perfume natural, nada de cheiros
bulímicos. Nem vinte minutos viajando, tão perto, que sorte. O corredor entre
as divisórias, a luz fria, o vidro das baias vazias. Ninguém ainda, muito cedo.
O segurança apontou a cadeira junto à bancada do computador mais próximo e fez
um sinal para que aguardasse. Olhou para cima, para os lados, para o chão.
Ambiente moderno, clean, cinza e aço,
móveis claros, azul mortiço nos estofados. As estantes embutidas, janelas
enormes, o ar já frio demais àquela hora.
Em sua cabeça começava uma
espécie de pingue-pongue sem mesa e sem rede, em que a bolinha zanzava pra
todos os lados quase sem tocar as raquetes. Endireitou-se bem na cadeira, não
fosse agora perder o controle da situação. Aliás, que situação que nada, aquilo
devia ser um teste. Imaginou que alguém estaria espiando, procurou câmeras
pelos cantos, nas luminárias do teto, nas esquadrias. Algum desses vidros
espelhados que as delegacias têm para que a vítima reconheça seu algoz sem ser
vista. Olhou de novo em volta, dessa vez à procura do homem de terno azul
escuro. Que tinha sumido, se esvaído, na certa lá na porta da rua, na portaria,
à espera de outros candidatos. Candidatas. Serviço pra mulher, só deviam
aparecer...
Entra na sala uma mocinha com
cara de caipira, ela ainda vê a mão de punho branco do segurança. A mocinha dá
uns passos e se dirige à cadeira da outra ponta da bancada. Fica de lado para
ela, que dá de ombros. É bonitinha, tem um jeito meigo. Mas vai ver nunca
trabalhou.
Depois da mocinha, entraram duas
mulheres maduras, louras de farmácia, saias muito curtas para o estado das
pernas, pneus marcados dentro das blusas muito justas. Daí em diante os
candidatos foram chegando aos magotes, e ela era apenas um olhar crítico
examinando os rapazes, jovens ou bobos demais; a moça de enormes argolas e
tatuagem na nuca (ainda não sabe que não se vai procurar emprego com tatuagem
aparecendo, coitada); a senhora de cabelos grisalhos, cara de aposentada,
talvez muito idosa para ser aceita. Não se sentia ameaçada por aquela gente.
Muito menos pela mulher de mechas descoloridas e unhas pretas, enormes garras e
gestos vulgares, equilibrando as ancas sobre saltos quinze.
Continuou sentada, costas retas,
ombros para baixo, só os olhos em movimento. Cruzara as pernas e balançava a ponta
do pé num movimento discreto e ritmado. Uma ligeira náusea se instalava em seu
plexo e ela suspirou. Agora entrava um homem, um cara tão alto que foi preciso
esperar um pouco para conseguir ver seu rosto. As pessoas se retraíram, fez-se
um silêncio mais acentuado quando ele passou. Imaginou que devia ser algum
figurão perdido por ali. Não tinha cara de candidato a emprego, muito menos de
secretário. Mas teve que reavaliar o bonitão depois que viu em sua mão bem
desenhada um envelope com uma etiqueta de letras nítidas: Hélio M. Siqueira –
Curriculum Vitae.
Além de vistoso, o rapaz era
comunicativo, e foi logo puxando assunto com uns e outros. Fazia comentários,
reclamava da demora, ouvia atentamente o que cada um dizia e acabou por
conquistar a simpatia de todos.
Com isso o tempo pareceu passar
mais depressa. Ainda bem, porque chamaram os candidatos pela ordem alfabética,
e Zilah – era esse o nome dela – saiu do prédio horas depois. Os cabelos tinham
perdido a linha, os pés doíam e o perfume há muito tinha sumido do corpo e da
roupa. O estômago agora se ocupava de consumir a si mesmo, e a pose estava
desfeita. Arrastou-se até sua casa e pôs para esquentar o feijão da véspera e o
arroz que preparara de manhã, antes de sair para a entrevista. Fritou dois ovos
e sentou para almoçar.
Enquanto satisfazia a fome, ia
pensando. Um homem como aquele devia aparecer na vida de uma mulher como uma
promessa, uma paixão à primeira vista. Mas não. Tinha que aparecer para
competir, para tirar dela a chance que já considerava ganha, com tudo pra dar
certo. Lavou o prato e os talheres sentindo-se um lixo. Escovou os dentes,
tirou o sutiã e deitou no sofá da sala para olhar um pouco a tevê, mas
adormeceu.
Sonhou que Hélio M. Siqueira era
uma espécie de observador encarregado de passar à chefia uma primeira impressão
sobre os candidatos. Não havia câmeras nem vidro espelhado de delegacia, mas
Hélio dava conta desse serviço. No sonho, ele a indicava como a melhor figura e
a melhor atitude dentre os pretendentes. Falava de sua aparência cuidada, dos
modos polidos e da postura correta que mantivera todo o tempo. Num desses redutos
obscuros que os sonhos engendram, Hélio e sua mãe eram a mesma pessoa, usando
as mesmas palavras que tinha ouvido tantas vezes nas conversas da adolescência.
Isso facilitava enormemente as coisas, porque além de conquistar o cargo,
sentia crescer a atração e a confiança naquele homem ambivalente, que no
momento indicado voltou a ser somente Hélio M. Siqueira e olhava para ela com
olhos de gula.
Acordou lânguida e úmida, com o
telefone tocando.
4 comentários:
Nessa onda de escassez de homens para casar, a candidata, além de sem empenhar para conquistar o cargo, já deveria propor ao Hélio M. Siqueira casa comida e roupa lavada!
Adorei.
Beijos
É isso aí, Kelly :)
Beijo beijo.
Dade:
Como gostei da Zilah!Tenho certeza que o bonitão vai logo escorregar na simpatia e ela será chamada antes mesmo de fritar os ovos no dia seguinte, você vai ver!
Beijos
Rssss
Tomara, Maria Teresa! Também torço por ela.
Beijo.
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