E agora isso. Um dia inteiro vazio, um dia à
escolha, um dia sem dono. Um espaço insólito de luz sem rumo. Havia serviço de
casa a fazer, serviço inevitável, mas sem muita importância e, a não ser que
não o fizesse, ninguém saberia de nada.
Nada o quê?
Ficou parada no meio da manhã sem saber para onde
ir. Não sairia como sempre, depois de um banho apressado e caprichado, bem
arrumada e perfumada, rumo à sala antiga, feia e familiar, à espera de uma
reforma com que ninguém mais contava. Não olharia aquelas caras do dia-a-dia,
os sorrisos-de-corredor, não ouviria as vozes conhecidas dizendo tudo bem?, não sentiria o sono de depois
do almoço nem a fome do antes, a caminho do restaurante de cadeiras azuis. Não
tremeria um pouco a cada parada inesperada do elevador entre dois andares, não
subiria seu tédio entre as paredes de aço mal limpas.
Olhou em volta do quarto ainda desarrumado,
mexendo-se com desconforto. Era um alívio e uma dorzinha machucada, amassada
num fundo sobre o estômago. Fora de todas as previsões de vinte anos atrás,
aliás vinte e três e três meses. Fora da garatuja traçada em sua carteira de
trabalho com aquele retrato com cara de Susan Hayward (quem se lembraria mais
de Susan Hayward) e da tinta preta que arrussara com o tempo. Nada a ver com o
bigode imenso do primeiro chefe.
O carrossel do tempo, coisa mais besta, o carrossel
da memória, o carrossel de imagens coloridas que não tinha muita relação direta
com as sensações daquele tempo que agora se manifestava em outro tempo como uma
foto que não reproduz bem a imagem que se guarda na memória. Não tinha domínio
sobre nenhum dos dois tempos, mas só sabia disso agora. O de antes ficava
hipoteticamente dentro do outro. Mas quem podia garantir alguma coisa?
As imagens antigas parecem agora planas, em duas
dimensões, e correm como numa tela sem fim. As imagens antigas parecem figuras
de papelão emendadas umas nas outras, correndo como um filme acelerado. Mas são
ao mesmo tempo aquelas de antes, os traços apagados e misturados, um ou outro
olhar surgindo e desaparecendo no meio de tudo. Uma ou outra voz que volta em
pedaços de fala sem articulação. A estatura de alguém, a camisa xadrez de um
colega, o ar entediado de outro. Um riso solto, a escada iluminada pelo óculo
de vitral (lá em cima havia o melhor banheiro do prédio velho) e o pequeno
labirinto ao lado da sala do chefe. “Nada impede que eu ponha você à disposição
do pessoal” – ele dissera para impressioná-la no primeiro dia, arrastando uma
voz envolvente e áspera como se tivessem pregado pontas de metal no fundo de
uma almofada de veludo preto. A seguir passara o braço esquerdo por trás da
cabeça para coçar a orelha direita, um artifício que usava para exibir
autoridade e uma certa majestade de xeque beduíno.
Ela nunca havia trabalhado numa empresa como
aquela, uma editora, e tudo lhe soava justificável e digno de respeito. Mesmo a
chamada da colega à direita para que diminuísse o ritmo de trabalho não pareceu
mais que uma correção devida à sua inexperiência. Ela não dissera “assim não
vai sair bem”, mas “ninguém trabalha nesse ritmo aqui”, e sua caneta parou no
ar imediatamente, tomada de temor e boa vontade. Questão de ética, com certeza,
quem era ela para discutir. Podia estar prejudicando colegas menos capazes,
mais lentas no trabalho, e isso na certa não seria recomendável nem a tornaria
mais querida.
Um vento enigmático movia as folhas dos galhos mais
próximos para a frente e para trás, sincronicamente, sem que se definisse uma
direção. O que chegava agora vinha de um corredor semiobscuro e em sua memória
um pouco frio. Mas não havia vento no corredor. As cortinas da janela do quarto
flutuaram alguns instantes como um par de asas translúcidas. Em sua sala havia
muitas mesas e muito papel. Era um mistério para ela que as pilhas nunca
diminuíssem, mas acabara se acostumando; fazia parte da natureza das coisas que
aquela papelada amarelasse sobre as escrivaninhas enquanto moças cultas e
agradáveis trocavam impressões e críticas menos ou mais maldosas, lembrando
conversas por sua vez mais antigas, conversas que se refestelam em cadeiras
confortáveis no aconchego de olhares cúmplices. Uma cumplicidade fugaz, naquele
caso das colegas de trabalho, mas assim mesmo cumplicidade e como tal parte das
boas lembranças.
****
Um lado das pessoas pode crescer além do previsível
Mesmo um louco pode ser uma pessoa mansa e dócil. Mesmo um louco pode vibrar de solidariedade, simpatia ou amor a alguém. Não raro, sabemos de casos assim. A diferença é que entre os ditos "normais" esses sentimentos são menos obsessivos, menos sofridos, talvez.
No entanto há loucos - que classificamos como psicopatas - capazes de atrocidades inomináveis. Não costumam ser muito numerosos entre seus pares, felizmente. Mas às vezes respondem, ou nem respondem, por um massacre, ou se tornam assassinos em série. São talvez o pior tipo de ser humano sobre a face da Terra. E o pior de tudo, é que não podemos adivinhar quem é ou não psicopata, quem se tornaria um monstro de repente. Há indícios, mas são menos precisos e infalíveis do que seria preciso para prever por exemplo o que aconteceu na escola de Realengo, nesta semana.
2 comentários:
Muito BOM!
Realmente é sempre difícil a convivência. Acredito que vigiamos nosso comportamento a cada segundo. Ora para não aparecer demais, ora para não parecer idiota.
Quanto aos loucos, Dade, o fato que ocorreu, vem se repetindo com muita frequência. Nos EUA, é quase mensal.
No meu meio social conheci de perto três. Pareciam anjos, antes do surto. Quando o surto acontece, eles já estão quase todos se achando DEUS. E estão certos de que o que faze, é para o bem. A imprensa divulga tanto, que os que não estão na fase de surto, podem a qualquer momento desenvolver.
Parabéns, amiga e escritora!
Beijos
Mirze
Obrigada, Mirze, você é sempre muito generosa.
Beijo grande.
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