Imagem Brueghel.
Imagino que o anúncio do fim do mundo, nestes dias de
comunicação vertiginosa, vai afinal dar uma oportunidade às pessoas para se
revelarem do jeito que realmente são. Os ansiosos patológicos e hipocondríacos
mórbidos com que a gente sempre esbarra aqui e ali possivelmente vão infartar
ou acabar com a própria vida sem ver o gran
finale. E sempre haverá quem acredite que é doce morrer no mar. Quem sabe
dormindo, com ou sem auxílio do gás.
Mas a maioria talvez promova a maior festa de que já se teve
notícia.
Afinal, acabou o primado do dinheiro, em razão do qual as
pessoas ralam a vida toda, obedecendo a horários menos ou mais implacáveis.
Acabou a obrigação de honrar todos os compromissos, engolir sapo, aturar chefe
ou patrão de gênio difícil ou fazer dieta. Casamentos de conveniência ou
cansados de tédio podem enfim dar um alívio a seus reféns. Oprimidos e
explorados podem afinal realizar seus sonhos mais libertários – e, em alguns
casos mais agudos, dar vazão a instintos assassinos sem medo da cadeia.
Exibicionistas, pervertidos, libertinos e seres assim em geral meio malvistos
pela sociedade podem enfim arrancar as máscaras e se acabar na noitada. Cada um
vai saber de si, e ninguém será de ninguém, se não quiser ser. Paralelamente,
caretas e reprimidos podem, se lhes aprouver, liberar geral ou então reafirmar
seu modo de ser até o fim.
Por outro lado, os crentes, religiosos e místicos de todas
as colorações estarão a mil, rezando, orando, cantando em coros talvez
desafinados, por causa do açodamento da hora, cumprindo penitências, fazendo
procissões improvisadas, pregando enlouquecidos no meio das praças. Como
sempre, haverá público para eles, que são especialistas no além; nas horas extremas
a credulidade das pessoas, que é diretamente proporcional ao medo, costuma
atingir picos nunca dantes navegados. Mas com certeza deve haver também
místicos de profunda vida interior que escolherão acabar em recolhimento e
silêncio, e para isso irão buscar o sossego das serras e florestas que ainda
restarem por aí, porque os templos estarão entupidos de carolas e o ruído das
ruas não lhes dará a paz necessária.
Paralelamente, os que se amam estarão juntos curtindo os
últimos momentos com a possível serenidade que só amor de verdade pode dar.
Apaixonados, recentes ou crônicos, vão querer morrer se amando, transando ou de
mãos dadas em seus lugares prediletos. Artistas talvez prefiram esperar o fim
praticando suas artes ou curtindo a beleza que deu sentido a suas vidas.
Não me lembro de ter algum dia parado para pensar em que
reação teria diante dessa notícia. Mas já que falei no assunto, acho que ia
querer reunir as pessoas que mais amo e liberar as comidinhas, os doces, o
carinho e a doçura de estarmos juntos, sabe-se lá se pela última vez.
10 comentários:
Você só esqueceu de dizer que certas emissoras comprariam o direito de transmitir o gran finale e que uma legião não desgrudaria os olhos da tela até...o fim!
Mas, sério...o que eu faria? Não sei! :-)
Beijos,
Oi Adelaide.
Também creio que o melhor lugar para esperar o fim do mundo é junto com as pessoas que nos querem bem e a quem queremos bem. Antes, porém, o sátiro que habita o meu interior - sem pagar aluguel - pretende reunir um petit comité para uma festinha final, pressupondo que tanto Lá em Cima como Lá em Baixo não sejam permitidos eventos desta natureza.
A propósito, considerando o arraigado bairrismo dos gaúchos, os jornais do pampa já têm pronta a manchete para o dia do juízo final: RS ACABA HOJE!
Beijo pra você.
É verdade, Tânia, a tv transformaria tudo em uma espécie de BBB macabro, e os espectadores seriam os mais bobocas de todos os tempos.
Beijos
Jens, até teus comentários têm esse humor saboroso que faz teus escritos serem imperdíveis. Adorei.
Beijo.
Dade, esse assunto do "fim do mundo", cedo ou tarde, aparece no pensamento (e na escrita) de quase todo mundo, né não?
Entre os mais bacanas relacionados ao tema, eu citaria um filme belíssimo - A estrada, dirigido por John Hillcoat - e uma música legal do Paulinho Moska, O último dia.
Mas, pessoalmente, se o mundo fosse acabar abruptamente, não acho que haveria tempo para anúncio. Caso houvesse, eu simplesmente diria: "PÔ, TINHA QUE SER JUSTO NA MINHA FOLGA?!?!"
E, na condição de careta e reprimido crônico, faria questão de reafirmar meu modo de ser até o fim.
Nossa, falei demais! Um abraço.
Minha querida pitonisa (ou melhor seria profetisa do apocalipse (rs)), sinto desapontá-la, mas o mundo não acabará, ele se transformará, salvo erro de Lavoisier.
Brincadeiras à parte, brilhante texto. E eu pensei, no auge do meu egoísmo:
Dane-se se o mundo acabar. Eu não acabando...
Halem, é justo que se pense assim. Afinal, somos como somos, e é preciso ser um bocado macho pra não se abalar. Mesmo porque, não ia adiantar nada.
Beijo!
Chorik querido, é claro que é tudo brincadeira, invenção sem maiores consequências. A menos que Lavoisier esteja mesmo errado (será?). Mas que acabam alguns pedaços do mundo, isso acabam de vez em quando...
Beijio pra você.
Boa reflexão, com este teu particular tom um tantinho irônico, e apropriadamente crítico!... Sim, as reações são variadas e curiosas quando se fala ou pensa no "apocalipse", e de fato, daria para se ter uma melhor idéia dos medos e sonhos de cada um, num momento em que se tivesse que enfrentar um final repentino e trágico!... De minha parte, também trataria de estar perto das pessoas amadas, e desfrutar deste calor, desta luz, deste prazer de estar entre entes queridos e precisoso, tanto quanto possível!... Beijinhos pintados!
De inteiro acordo, Analuka querida. Grandes afinidades entre nossos pontos de vista.
Beijocas de muitas cores.
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