O delegado de plantão não
tinha o aspecto desagradável e distante dos que apareciam nos filmes, e era uma
pessoa acessível a seu modo. Puxou uma cadeira de assento carcomido. Seus
gestos eram desembaraçados e certeiros como se houvesse ensaiado a cena muitas
vezes antes. Ou como se dosasse todas as manhãs uma mistura com duas partes de
energia e uma de delicadeza para tomar durante o café.
Ela o olhava um tanto
relutante e embaraçada. Tinha entrado na delegacia com o discurso pronto, mas
ansiosa como uma ave na tela do viveiro. O coração acelerado lhe cortava um
pouco o fôlego e sentia dificuldade de articular as frases. Mesmo assim
acabaria conseguindo contar a ele o que havia acontecido, as cenas de ciúme
doentio, as brigas e as surras – tinha marcas –, os dois anos de seu casamento
infeliz regado a cerveja.
À medida que as palavras
saíam de sua boca, seus pedaços dispersos há algum tempo pareciam voltar a se
reunir. No fim do depoimento estava quase tranqüila, e ao mesmo tempo tinha
ficado mais sozinha do que nunca.
Sozinha feito o monumento
do meio da praça. Estava livre de tudo, sem envolvimentos com ninguém no mundo
e com a vida a céu aberto. Já não sentia nem medo, mas tinha perdido mais que o
necessário. Era como se dividir a história que vinha carregando há tanto tempo
lhe deixasse enfim espaço para uma outra ela-mesma e esse espaço fosse
excessivo.
Não quis a proteção que o
delegado lhe ofereceu. Não acreditava que o marido tivesse qualquer intenção de
atacá-la fora da cena já conhecida, e não deixara o novo endereço com ele. A
essa altura o infeliz devia estar se encharcando, sem ela pra atrapalhar.
Também agora, que se olhava como outra pessoa, julgava impossível ser covarde a
ponto de ficar com medo de um homem que um dia tinha sido tanto pra ela. Além
disso considerava essa proteção uma invasão inútil de estranhos, um complicador
desnecessário. A última coisa que desejava era o convívio de estranhos. Queria
conviver consigo mesma, curiosa de ver como seria agora. Lamber-se como uma gata
menstruada, sentir o gosto do próprio sangue. Ser só e tratar de si mesma.
Enquanto ele ainda estava
fora, apressou-se a retirar da antiga casa tudo que deixara para trás na fuga
destemperada. Ele não devia demorar, a não ser que tivesse ido para o bar. As
primeiras estrelas se acendiam, e aos poucos um vento áspero e inamistoso
invadia a sala, vindo da rua. Como em instantâneos, ela via os móveis, a cama
revolvida, a janela. Frases sem sentido vinham a sua memória. Não tinha
registrado queixa a respeito do carro que tinha comprado com suas economias e
ele afinal tinha roubado e escondido dela. Não eram os bens materiais que a
preocupavam, mas qual seria sua verdadeira vida depois de tudo.
Nessa noite o sono foi
escuro e inquieto, o primeiro sono da nova pessoa, em que ela se olhava de
algum ponto secreto enquanto dormia. Não se lembrava de ter sonhado, mas
despertou cansada, com um sentimento incômodo e recriminatório que não lhe deu
sossego durante toda a manhã.
Não tinham passado ainda
vinte e quatro horas, voltou à delegacia para retirar a queixa. Deu um pouco de
trabalho, mas acima de tudo foi humilhante por causa da cara de ironia e enfado
do delegado, antes tão cavalheiro, a lhe dar conselhos e orientações que não
estava pedindo. Não escapou nem da piadinha sobre mulheres que gostam de
apanhar.
— Não foi bala perdida –
explicava o detetive de plantão a um repórter três dias depois. O delegado está
certo de que foi proposital, já mandou prender o suspeito.
— Isso mesmo, confirmou o
delegado, saindo da viatura que acabava de encostar na calçada onde o corpo
tinha amanhecido com um tiro certeiro no pescoço. Eu avisei. Mas tem muita
mulher que é assim, fica dando mole. Completa a perícia e pode recolher ao IML.
The Bill I love
11 comentários:
Que dizer, a não ser que este texto (excelente, por sinal) retrata bem o primitivismo em que ainda vivemos?
Beijo :)
Fiquei curiosa, achei que poderia acabar assim, mas torci por ela, como torci. A coragem às vezes é tanta, que machuca quando colocada na moldura na parede principal da sala.
Beijos
Tristemente belo e realista.
Um dia, espero que não muito longe, esse caso poderá ser verídico.
Estou inteira dentro do texto.
Maravilhosa escritora que capta o sentimento.
Parabéns, Dade!
Beijos
Mirze
Caro AC, penso que cada um de nós guarda e carrega por onde vai um primitivo irremediável. A diferença está no modo como cada pessoa convive e controla esse irracional.
Abração.
No caso dela, talvez não se chame propriamente coragem, embora exista coragem também nesse sentimento que faz perder o medo.
Beijo grande.
Mirze, teu comentário é um pouco enigmático. Espero que não tenha o sentido que imaginei à primeira vista. Não vale a pena, nunca.
Beijo beijo.
Querida Adelaide, teu texto é instigante! E, penso, muito apropriado nestes tempos em que tantas mulheres apenas ensaiam, ensaiam, ensaiam seus vôos e saídas da gaiola, às vezes arriscando uma espiada ou escapada, para depois voltar ao aprisionamento de certas relações perigosas e desgastantes... Este texto, parece-me, tem um tom de alerta...
Abraços alados e beijos pintados!!!
Oi Adelaide.
Conto seco como um martini. Mas com a sensibilidade que só mulheres de talento sabem exprimir, o que se evidencia em imagens como:"ansiosa como uma ave na tela do viveiro" ou "Lamber-se como uma gata menstruada, sentir o gosto do próprio sangue." É um prazer ler coisas assim. Você sabe ser durona como Rubem. (Elogio meio machista, né?).
Beijo.
Nunca é demais chamar a atenção das mulheres para os riscos que elas correm e que frequentemente acabam com elas. Seria muito bom se fôssemos sempre capazes de distinguir amor de temeridade.
Beijo, querida.
Jens amigo, não se trata de machismo, coisa com a qual não compartilho e que detesto. Trata-se de ser realista. Não há epaço para o sentimentalismo, que nem é só feminino, em casos como esse. Melhor chorar uns meses e continuar viva por muitos e muitos anos - possivelmente feliz com outra pessoa.
Beijo pra você.
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