Quantos amores vc já teve?
Pensou em mudar?
Ainda pensa?
Umbigo do Sonho
sexta-feira
quarta-feira
Imagens de Sílvia
Sílvia Chueire. Por favor, um blues. Cosmorama.
.
Os verdadeiros poetas lidam com as palavras como se fossem
contas ou peças de mosaico, como quem faz colares e quadros de uma variedade
quase mágica de combinações. E o bom
leitor de poesia, vamos reconhecer, é um camaleão que mimetiza a beleza onde
ela se encontra e embarca em asas alheias.
Poderosamente livres, as imagens e a música bem
características de Sílvia são capazes de levar mais longe do que as palavras
sugerem. Sem perder o domínio de seu instrumento, a autora oferece um conjunto
harmonioso de poemas onde aqui e ali um verso cintila e surpreende, iluminando
uma nova face de existência, um novo sentido que se abre ao leitor. O que à
primeira vista pode parecer identificação, é na verdade a visão concreta de uma
experiência que se comunica poeticamente na linguagem reinventada, não raro
cheia de vida e emoção, dos poemas de Sílvia Chueire.
segunda-feira
Eles
Esbarramos
neles a cada passo. Estão por toda a casa, nos espaços entre as poltronas da
sala, na escada da varanda, nas janelas dos quartos. Às vezes deitam-se na
cama, e quando à noite retiramos a colcha rolam para o lado; cheguei mesmo a
sentir o roçar de um deles na ponta do pijama.
Minha
mulher pisou num deles outro dia. Pelo menos acreditamos que isso tenha
acontecido, porque ela ouviu um pequeno grunhido e sentiu, embora muito
rapidamente, o pequeno volume que se retirava de baixo do bico de seu sapato.
Hoje de manhã comeram as duas torradas que deixamos
na mesa para o café, enquanto íamos escovar os dentes. Viraram a leiteira e o
leite estava todo derramado na toalha e no chão quando chegamos. E algum mexeu
na cafeteira, que deixamos ligada e encontramos fria.
Nunca
descobrimos de onde eles vêm nem como são exatamente. Intuímos que sejam muito
pequenos, porque às vezes, como já mencionei, pode-se perceber um leve volume
sob um lençol na cama ou causam algum deslocamento de ar, como se passassem correndo.
Ia me esquecendo de uma coisa importantíssima para atestar sua existência: eles
têm sombra! Ao sol ou à luz das lâmpadas, projetam uma mancha escura de formato
um pouco indefinido, ora mais alongada, ora mais redonda. Não se notam braços
ou pernas, e a cabeça, se a têm, deve ser embutida no corpo. O mesmo indivíduo
pode se desenhar com formas diversas no chão ou numa parede clara, e seus
movimentos devem ser ultra-rápidos, a julgar pelo tempo da projeção.
Não
sentimos medo deles; apenas nos incomodam um pouco. Os micos que às vezes
entram pela janela da cozinha são muito mais difíceis de aturar. Nem vou falar
dos mosquitos à tardinha ou dos gatos famintos que nos obrigaram a trazer um
cachorro para casa. Os animais não parecem perceber a existência deles, embora
de vez em quando Flash Gordon, nosso cão, olhe com desconfiança inexplicável
certos cantos da casa.
Ontem
à tarde saímos para procurar um apartamento perto da praça, onde há mais
movimento e algum comércio. Creio que um deles (ou mais de um) foi no carro
conosco e aprontou. A proprietária nos recebeu amavelmente, e nos mostrava
todos os recantos, armários e vantagens do imóvel, quando a porta da entrada
começou a ir e vir sem razão aparente. A mulher, que talvez acredite em almas
do outro mundo, foi ficando cismada e acabou deixando transparecer seu
desagrado e desconfiança com nossa presença. Por fim inventou uma desculpa
qualquer para nos despachar, querendo se ver livre daquele casal
mal-assombrado. Tivemos uma experiência semelhante há quatro dias, quando
tentamos fechar negócio com outra casa duas quadras abaixo da nossa. Era uma
linda casa clara, arejada, voltada para o sol da manhã.
Nessas
duas ocasiões voltamos meio desanimados. Principalmente ontem. Parece que eles
gostam muito de viver conosco e não pretendem nos deixar. Mas não vamos
desistir assim facilmente.
Por que a poesia é tão importante
Acredito na poesia como uma experiência que não para de se renovar, e ao longo do tempo pode tornar as pessoas melhores. O exercício da poesia induz o autoconhecimento, sem o qual ninguém sai do lugar. Dá a medida e o peso do que é preciso saber, porque ilumina a razão com a experiência mais íntima das coisas e dos acontecimentos. Aliás, poesia é acontecimento.
Poesia não serve para rimar palavras ou burilar frases de efeito. Ela relativiza as defesas que criamos para nos aprisionar; remove as máscaras com que tentamos nos esconder ou nos engrandecer. Desmistifica toda fantasia que não exista para celebrar, mas para enganar os outros e a nós mesmos. O exercício da poesia revela a inutilidade de nossos álibis. É o par de asas a nosso alcance.
Acredito profundamente na poesia, porque aproxima estranhos e diferentes, semeia um conhecimento para o qual não existem currículos bastantes, desperta o corpo e a alma das pessoas para uma liberdade que nada pode destruir, porque consegue dizer o que nenhuma outra linguagem comunica. Um bom poema é o simulacro de um momento na vida de alguém, com sua grandeza e fragilidade.
Acredito na força da poesia, capaz de revelar a beleza de uma fruta, um corpo ou uma guerra; uma paixão ou um canto de casa empoeirado, a lama da estrada, as nuvens de chumbo – melhor ainda se o arco-íris não aparecer.
E porque não se impõe nem obriga a nada, acredito que a poesia é a expressão mais verdadeira da difícil liberdade humana.
domingo
São dois rios que passam em nossas vidas
Ao contrário do que se
imagina, quando sumariamente se condena o ódio, o que se está fazendo não é um
julgamento, mas uma redução. O que merece julgamento e condenação são os atos,
não os sentimentos. Parodiando a letra do Aldir, os sentimentos e as manhãs são
espontâneos, “levantam do escuro e ninguém pode evitar”.
Há muitas formas de
amor, e há também muitas formas de ódio – sentimentos muito mais parecidos do
que se imagina a uma primeira visada. Por isso o falso impasse: amor e ódio
seriam opostos, antagônicos. Um anularia o outro. Por definição – acredita o
senso comum – amor quer somente o bem do outro, ódio somente seu mal.
Qualquer conceito –
acima de tudo os que o senso comum consagra – requer revisões periódicas.
Acontece que entre um e outro extremo as variações são infinitas. Amor e ódio
são como dois rios que nascem juntos e correm muito próximos durante a maior
parte de seus cursos; por serem líquidos, qualquer chuva forte ou movimento
mais brusco faz com que suas águas se misturem. Escandalizar-se com essa
afirmação me parece uma daquelas hipocrisias ingênuas (mas não inofensivas) que
se repetem todos os dias por hábito ou falta de crítica, que são os dois
maiores amigos da mentira e do equívoco.
Quando se idolatra
alguém a ponto de não poder duvidar desse alguém e por ele ou ela se pratica
qualquer ação ou se faz qualquer sacrifício, é provável que já se tenha
começado a surdamente odiar esse alguém. É fácil ver por quê: o ídolo, o ser
que se idealiza, se alimenta da carne, da vida e do sangue daquele que o
idolatra.
Amores como o materno e
o paterno não estão excluídos desses percalços. Quantas vezes se experimenta
impaciência extrema com um filho que impede nosso lazer e nossa liberdade de ir
e vir, atrapalha nossas conversas, consome o tempo que gostaríamos de estar
aplicando em atividades mais lucrativas e agradáveis do que limpar um bumbum ou
inventar expedientes para alimentar um guri
inapetente, que ainda por cima se mostra malcriado e teimoso. Quantas
mães e pais empenham anos de sua vida (às vezes os melhores, enquanto ainda se
é jovem e cheio de planos e sonhos) para cuidar de um filho deficiente,
prejudicado por um acidente ou um distúrbio de origem genética e sem esperança
de cura? O senso de responsabilidade e a compaixão têm um papel importante
nesses casos, mas a animosidade em relação a essas pessoas sempre existirá como
reação natural de um ser humano impedido de viver plenamente a própria vida.
Dirão talvez que isso não é ódio. Eu digo que é uma de suas manifestações mais
brandas e civilizadas. Querem a prova? Se faltar autocontrole, formação moral e
maturidade emocional, como nos tristes casos que conhecemos bem do dia-a-dia,
teremos mais uma criança abandonada, rejeitada e perdida para si mesma e para a
sociedade. Ou, mais escancaradamente, o ódio paterno ou materno se manifestam
na violência exercida sobre essa criança.
Assim como acontece com
o ódio extremado, também o amor extremado é destruidor. Como a recíproca é
sempre verdadeira quando se trata de sentimentos, a lógica do amor absoluto
exige em troca que o ser amado seja tudo aquilo que se atribui a ele e supõe
que também o amado seja integralmente dedicado, grato, confiável, amante e
encantado com quem o ama tanto. Mas isso não acontece, por vários motivos.
Primeiro porque esse tipo de relacionamento é ilusório, idealizado, falso e
impossível. Segundo porque o outro é e será sempre o outro, por mais que se
projetem nele os próprios sentimentos.
Além desses motivos
intransponíveis, o amor que se autodenomina perfeito destrói o ser amado porque
não lhe deixa ar e espaço suficiente para a liberdade de se amar a si mesmo e
se realizar como ser único. E se na prática não se exigir essa simetria total e
compreender que o outro pode sentir diferente e experimentar outras
necessidades, começa a se formar a tsunami do ciúme menos ou mais declarado, da
possessividade reprimida – e olha o ódio despontando aí, minha gente!!!
Entre pessoas ditas
civilizadas, capazes de autocontrole e autocrítica, o ódio talvez se mostre
mais sob a forma de raiva, implicância ou até se volte contra o sujeito que o
experimenta, como um escorpião que injeta em si mesmo o próprio veneno. Mas
ainda nesses casos, ele pode também eclodir em toda sua força, primário e trágico.
Não há como se iludir:
ninguém está isento de ódio, nem é incapaz de manifestá-lo. Ódio não é a outra
face da moeda do amor, mas seu continuum. E como certos venenos, em
pequenas doses pode ser imprescindível para mover a vida, que sem ele ficaria
estagnada num pântano de sentimentalismo e mesmice.
A grande sacada em
relação à energia desses sentimentos, capazes de destruir seu objeto, é que ela
pode também se metamorfosear em força criativa. Nesse caso, em que se torna
capaz de reinventar a visão de mundo de uma pessoa e modificar a realidade,
essa energia pode ser responsável pelo surgimento de obras de arte, grandes
invenções, descobertas importantes para a humanidade.
Mas essa metamorfose
real da força da libido faz parte de uma outra conversa: aqui entram fatores
diversificados e difíceis de precisar, porque têm origens variadas. Um deles é
com certeza um traço que diz respeito à educação, que muitas vezes não coincide
com o conceito do senso comum.
quinta-feira
Não há fuga
Não há como fugir: os dias
são diferentes, mas iguais no que se sucede – manhãs tardes noites madrugadas
horas batendo martelo nos segundos. Os dias são como um leilão do que você quer,
mas só vai levar se perceber a música do martelo.
As cores mudam, porém,
tanto as do céu como as do coração, e os tons são inacreditáveis, de uma pessoa
para outra e até para a mesma. As diferenças na mesma pessoa são mais
claro-escuro, ton-sur-ton, porque o fundo é meio repetitivo mesmo, fazer
o quê? Cada um se faz recaindo no refazer do que mais procura evitar. E quando
o sol aparece, por causa desse estado de mesmice, pode dar a sensação de que
tudo está igual. Mas até o sol tem matizes e variações, é só prestar atenção
para ver: o sol não mostra sempre a mesma face, e às vezes está furioso e
queima com raiva, mas às vezes acaricia a pele que nem homem enamorado.
As diferenças de uma mesma
pessoa se devem a que os poros deixam entrar sempre o que lhes interessa mais.
Além disso, o nunca tem muitas frestas. Se digo “nunca”, na mesma hora meus
poros se abrem. Daí advém toda contradição do ser humano, e também suas
repetições inesgotáveis e seus melhores prazeres.
Os dias podem parecer
iguais naquilo que os outros exigem da gente.
A coisa acontece assim: a
gente se repete e recai e refaz o que já andou fazendo a vida toda. Quem vive a
nosso lado também recai e repete. Quando alguém refaz seu refazer e ressoa em
nossa alma como repetição, é a rotina. A rotina não é o que eu faço, mas o que
os outros querem que eu faça, e eu faço, repetindo – não o que eu quero e
repito por minha própria conta, porque é meu e é como eu sou, mas o que os
outros querem que eu refaça por eles. Nisso consiste o poder de uma pessoa
sobre a outra: ser capaz de ressoar sua própria repetição no outro. E quanto
maior o poder, maior o número de pessoas a refazer a repetição do poderoso. O
que obviamente não é justo nem salutar para ninguém.
Quem apenas ressoa o que o
outro repete e o refaz sem conseguir deixar de refazer, é um candidato a passa
humana. Quem não se libera da gaiola da repetição do outro, é pássaro morto
dentro da gaiola sem ninguém para chorar por ele. Quem não olha em volta e
procura sintonia para ouvir melhor a música do outro, chama-se submisso e nem
merece muito que se chore por ele.
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